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xingu

 

 

não se apreça um rio

;

seu fim é só o começo

seu preço é um leito vazio

 

 

 

condensação

 

passarada se recolhe

mais cedo

vai-se a cantoria

 

a luz desce

a copa do arvoredo

desfolha

 

parece que o dia encolhe

quando molha

 

 

 

o banho

 

 

a gueixa sonhou

que a rã de bashô é fã

do seu ofurô

 

 

 

 

 

toda língua é mole

é dura

tanto engole até que fura

 

trava a língua trova

palavra

tanto parva até que prova

 

baba lava a língua

poesia

tanto pinga até que expia

 

boba a língua é um dedo

de prosa

lambe o medo até que goza

 

ora quem não xinga

não ora

morre com a língua de fora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

o cabelo

 

atrás da pipa

a linha voa ao léu

rabiola

 

rebola e equilibra

a fibra que alinha o céu

da cachola

 

caraminhola alada

serpente emplumada

biruta de parapente

 

escuta o tempo sente

corrente leste ascendente

invento quente que vaza

 

ronda à solta à toa

na réstia de uma brisa boa

que a ponta da asa antecipa

 

 

 

 

lady macbeth

 

o orvalho que lambe o corte

dilui meus vermelhos

;

glóbulos de espelhos

 

cada gota d’água dá à morte

um tom mais ameno

de mim

 

 

minha fúria é um jardim

cheio de som

e sereno

 

 

 

 

a promissória

 

martelo e não prego

meu nêgo não nego

eu devo e não pago

 

eu fumo e não trago

a pessoa amada

de quatro em três tempos

 

eu choro e não mamo

eu amo e não ligo

eu sigo e não lembro

 

você nada eu ando

caio e não consigo

mas saio ganhando

 

 

 

o sulco

 

quando o não evapora

um verso sopra no vácuo

 

verdades eternas;

 

a obra mora na dobra

do universo

 

no sovaco da cobra

 

no vão entre as pernas

 

 

 

 

errância

 

eu sou um lápis

errando no espaço

entre dois traços

 

 

eu sou um lapso

 

 

 

a bela

 

qual vaidosa amante

que se enfeita e posa

nua entre o lençol

 

a lua minguante

em nuvens se deita

à espreita do sol

 

 

 

o meio-fio

 

nem todo rato é pardo

nessa úmida via

nicho

entre o bem e o mal

 

entre o bicho e o bardo

é o tao que mia

 

miau

 

 

 

 

 

bem ao fundo um avião

risca de branco a tarde

parada

 

em bando a passarada

passa raspando e nada

nesse mundo chão

me arde

 

 

 

 

a onça

 

procuro pegadas

vestígios

 

poemas são armadilhas

de ideias

 

alcateias caçadas

no escuro refúgio

das madrugadas

 

 

o vapor

 

a chuva chega primeiro

como um aroma

 

água de cheiro que se toma

antes do chuveiro

 

 

o pica-pau

 

você jura, saracura

mas é do bico pra fora

vem cheio de quero-quero

que pena, não é sincero

me beija-flor quando eu falo

pra depois cantar de galo

,

eu sou só uma andorinha

mas faço verão sozinha

gaivota voo pro mar

coruja demais sou sábia

pra cair na sua lábia

colorido colibri

 

(e saiba que bem-te-vi,

sabiá, assobiar

para a juriti)

 

 

 

o intruso

 

é o pregoneiro é o carro

do pão da pamonha da fruta

e outros nomes impróprios

atropelando o colóquio

entre a poeta e a puta

 

 

 

 

quando durmo não distingo

dia santo de domingo

 

o dia é que põe o pingo

gelado no i

do desabrigo

 

a luz é que faz cair

do céu noturno

 

o espanto

 

o peso desperta a dor

à flor do chão

 

velho amigo

 

 

o simpático

 

sob a derme dorme

o verme enorme

que me come do cóccix

ao pescoço

.

.

.

meu sistema nervoso

 

 

sandy

 

fendas se lavam

em ondas de lágrimas

torrenciais

 

,

 

a mãe natureza em bucólicas

menstruais

 

 

 

o telégrafo

 

ouço um mar de ideias

sons sinais a esmo

e eu cá que me esforce

(ou não) por traduzí-los

 

 

pois agora mesmo

milhares de grilos

declamam epopeias

em código morse

 

 

 

não creio em bruxas mas temo

que o demo me chame assim

:

madame mim

.

 

o baile

 

longe uma festa

mas cá pra mim

tenho a floresta

no meu jardim

 

dá seu coaxo

o príncipe-sapo

e eu até acho

tão lindo o papo

 

que só o canto

de uma ave rara

comove tanto

 

 

sapo não fuja

de um cara-a-cara

com uma coruja

 

 

 

o bunker

 

no fundo do umbigo

resguardo um suspiro

escondido num verso

pra alguma emergência

 

meu abrigo submerso

à prova de tiro

e de ausência

 

 

o remo

 

?

com quanto pau

se escreve

 

uma canoa

que me leve

a algum lugar

:

nem tanto ao mar

nem tanto à toa

à meia-nau

¿

 

 

 

a dona é móbile

pêndulo ao vento

moto perpétuo

do pensamento

 

sempre uma lágrima

risca seu vidro

do pranto ou riso

é prisioneira

 

a dona é móbile

qual pluma ao vento

muda o momeeentoo

 

em outro pensei!

 

 

 

o papel

 

no avesso de mim, reverso

nem tão eu, nem tão diverso

o espelho com quem converso

 

mesmo em momento adverso

frente a um destino perverso

disperso a dor, tergiverso

 

divago pelo universo

abuso do controverso

recurso de ver o inverso

dessa vida e vide-verso

 

 

 

a primavera

faz o inferno acabar

no tranco

 

quem espera

um dia alcança

 

o tamanco

pra matar

a esperança

.

 

 

o pêndulo

 

ai que essa vida vem

vai a gente também

cai depois fica bem

trai o amor que não tem

sai de cena sem nem

ai

 

 

 

o lago

 

a história não vem pronta

prévia; desaponta aqui

desponta ali na outra

ponta uma vitória

régia

 

 

o balde

 

desço ao poço

tudo ouço nada posso

dizer às pedras

 

 

a água sobe

a parede

 

a sede

até o pescoço

 

 

 

 

figura e fundo

 

chuvinha fina

solando e atrás da cortina

o astro na surdina

 

 

 

a maçã

 

minha ânsia vermelha

descansa à sombra

na distância entre a boca

e a sobrancelha

 

 

 

hoje é tido como fato

que o universo conhecido

é bastante parecido com o neurônio

de um rato

 

? será o instante o ruído

de uma sinapse

? o colapso de um sonho

? um sintoma

 

meu sistema foi roído

à queima-roupa

pelo céu da boca

de um rei nu

de roma

.

o chamado

 

já passa das duas

cães uivam pras luas

(pra lá de onze)

de saturno

 

que vão é o céu!

 

saturno é longe

nenhum anel

responde

 

 

 

 

 

porque hoje é sábado

o mundo está bêbado

pecado é estar lúcido

no reino de lúcifer

e o papel da bíblia

é o que me sóbria

 

 

o suspiro

 

ah se o coração

pensasse

 

ah se a tua astúcia

amasse

 

ah se a tua mão

falácia

 

 

a tapeçaria

(para bia occhioni)

no antigo solar

vibram novos sons

de um velho piano

 

no pátio as amigas

desfiam o pano

roto e milenar

das intrigas

 

desmancham histórias

 

rebordam seus planos

recriam salões

da memória

 

 

 

 

 

o mundo vai mal

qualquer dia é natal

que loucura

 

o presente não dura

um segundo

 

 

 

a miríade

 

faço trabalhos medonhos

sem suor

nem paga

 

e um grande amor me deixa só

uma imagem vaga

 

a vida tem dez mil modos

 

na verdade todos

sonhos

 

 

 

ambar gris

 

tem nome que esqueço

de um vapor vulgar

que não me cabe

 

tem cheiro de amor

que dá e some

no imundo

 

tem brisa fugaz

tem vento do mar

profundo

 

 

devagar evanesço

.

.

.

 

 

cada perfume sabe

seu preço

 

 

 

 

serei aquela que inventa

o solitário marujo

náufrago em árdua tormenta

calhando à ilha onde fujo

 

serei a areia e a esponja

água-doce e flor-de-sal

a messalina e a monja

no idílio azul de um luau

 

e eu, bacalhau de quitanda

quimera, mito que nada

serei sereia que anda

 

rabo-de-arraia que corre

uma água-viva que morre

na praia e acorda molhada

 

 

 

[arquivo em audio >> o canto da kianda ]

a barganha

 

troque sua cara

por um par

de óculos caros

 

troque seus dois pés

por um bom carro

 

troque suas tetas

por funis

de silicone

 

troque seus dois olhos

por fuzis

e um i-phone

 

 

 

a grafite

 

eu caderno

sem poema

 

cada letra

preta arranca

 

um fonema

da dor branca

em que me interno

 

 

 

o outro

 

quimera

você não existe

 

ou existiu por instantes

mas antes eu já era

 

triste

 

 

 

procura-se homem de espírito

complexo

sem vício moral

 

para nexo oral

implícito

que explicar tá difícil

 

 

 

 

e a água do mal

a ir e vir

me cansa

 

alquímica dança

que revolve

o meu sal

 

lacrimal pedra viva

que me vinga

e coagula

 

a saliva que solve

o meu elixir

na sua língua

 

 

 

a prece

 

ó deus livrai-me dos chatos

dos crentes

dos literatos

dos ateus

de deus e o diabo

 

dos vícios

e das virtudes

dos inícios

e finitudes

 

e por fim

deus meu do céu

oh hell

livrai-te de mim

 

 

a plêiade

 

a musa tem muitas vidas

mil poetas suicidas

 

sylvia florbela alfonsina

alejandra ana cristina

lindas e findas

sem amor

 

um dia mudo essa sina

quero morrer bailarina

 

 

blue moon

 

na noite sóbria

a lua óbvia

ulula

 

a antiga esfera

no ponto exato

em que se espera

 

 

o espaço um ópio

o tempo aflora

o agora inato

 

e se ela pula?

 

 

 

pinga da boa

e de graça

,

faz fila

:

tu quieres

ela não tequila

.

 

 

o casulo

 

quando um bicho caiu na chávena de chá da princesa

o serviçal que lhe servia a mesa

teve um calafrio

 

foto: mercedes lorenzo

despediu-se da ignara vida

já sentindo da espada o fio

na nuca

 

porém manteve a cabeça ilesa

porque a princesa maluca

tirou da própria nuca uma vareta

 

e com a vara

pescou do fundo da xícara a casca do bicho

que dissolvida

 

num instante espichou-se numa fibra estreita e comprida e brilhante e macia e colorida e tão linda como uma longa vereda

 

e em vez de jogar no lixo

pediu ao servo um tear e teceu inteiro

o fio imenso

 

fazendo o primeiro lenço

de seda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

arquivo de áudio >> o casulo

godot

 

não existe homem santo

não existe rima rica em esperanto

no entanto a gente insiste tanto e fica

 

esperando

 

 

 

 

 

 

[arquivo em audio]

 

dita à meia-boca

saudade pouca

é bobagem

 

dizer pelo dito

não vale o escrito

 

que dirá a viagem?

 

 

a opala

 

nem toda gema

é clara

 

nem toda pedra

rara

se vê de cara

sob o pó

 

há que ter pá

e ciência

pra polir

 

problema

 

até luzir

poema

 

 

 

 

a fração

 

o humano se reparte:

 

mulheres são de marte

homens são de menos

 

 

 

nossa poesia se extingue

num silêncio bilíngüe

 

 

 

 

olho dágua

 

meu olho vaza

;

 

foi um rio que passou

na sua casa

 

 

 

o varal

 

 

samba-canção

molha a calçada

do meu domingo

,

nu vens ao chão

a cada pingo

 

 

xiva

 

reza a história que um deus

descrente

da própria existência

 

descriou a ciência

em uma semana

e a arte em um dia

 

sorridente comeu

dente por dente

a falácia

 

da humana cultura

que perfura a memória

das galáxias

 

 

 

 

[arquivo em audio >> xiva ]

o hádron

 

o passado é estanque

o futuro abstrato

o instante é uma curva que não se fecha

 

a flecha do tempo só se dobra

diante do rabo da própria cobra

 

 

 

 

a fala é tosca

mas busca

 

em boca fechada não entra

música

.

 

 

o palato

 

a língua

dama do meu palácio

não é uma moça fácil

 

faz troça

reclama

faz um drama enorme

 

mas quando adoça

dorme

na sua cama

 

 

 

o si bemol

 

o alado alarido dos bichos da mata

dá canja num arranjo

de serenata

 

a língua de um anjo cá no meu ouvido

me toca um silêncio

#

lá sustenido

 

 

o asterisco

 

estrelinha inscreve

uma pausa breve*

entre linhas cheias

de semicolcheias

 

 

*a breve é a nota mais longa que pode ser escrita com uma única figura musical, mas é utilizada raramente, pois sua duração é maior que a maioria dos compassos. [fonte: wikipedia]

 

 

jaca já

 

sob a mangueira

a primavera me cheira

como já queira

 

 

o bem-te-vi

 

no ipê-roxo um ovo

rebenta um novo canto

 

ouro sobre um dia branco

 

 

a murucututu

 

traço um esboço

insisto em rasas

garatujas

 

o silêncio tem asas

ouço corujas

 

 

o fumo

 

 

nuvem que passa

me traga

sinais de fumaça

 

galáxias

que não sei onde

vê-las

 

(a chuva esconde

as estrelas

mas não apaga)

 

 

o sonho

 

acordo morta

e ainda respiro

 

o céu continua

seu giro

a lua cumpre

seu turno

e ninguém se importa

 

nada é pra sempre

eu ainda durmo

nua

 

 

o túnel

 

o olho do artista

vê a luz onde quer

que resista

 

 

 

[foto de Silvio Crisóstomo ]

 

 

a enfermeira

 

árvore velha à janela

do hospital me parece

que já escutou bem mais prece

que a capela

 

 

a goteira

 

chove tanto

que até telha de amianto

se comove

 

 

à preamar

 

sobra essa ardência funda

que molha tudo

quanto penso

 

minúsculo grão de areia

no olho incomoda

imenso

 

a música avisa que acaba

menos pra quem pouco

alcança

 

silêncio no mar é alto

volta e vem em ondas

vagas

 

a dança da vida é longa

contudo há quem curta

pacas

 

sinto muito ainda sou viva

pra sempre já é

pra ontem

 

no balanço da maré

o vento me traz

alento

 

as flores de manacá

com o tempo são brancas

são roxas

 

a brisa mansa me sopra

pra dentro por entre

as conchas

 

 

 

nem cristo salva

o sol do amor redentor

da estrela dalva

 

 

o poste

 

lâmpada fria

fia-te luz do dia

tarde da rua

 

a lua late

antes da light havia

a via láctea

 

 

 

dia tão lindo

que as samambaias choronas

estão sorrindo

 

 

 

de A a Z

tudo é seu nome

que eu não sei ler

no caos da fome

 

 

o dígito

 

com quantos dedos se fez

carne

meu poema

?

pra caber

entre os seis medos

da sua mão pequena

 

 

 

 

depois do rei morto

deposto

a resposta é só

não sei

 

a alma é sem lei

sem porto

o amor é um deus

sem rosto

 

 

a enseada

 

mar bota fogo

vento pára, a baía

me guanabara

 

 

 

volto ao jasmim

mas que bobagem as rosas

não falam as rosas

exilam

o perfume que roubas

de mim

 

 

 

da feia e tosca taça cheia

de graça que tateia

vazia no escuro

em busca do

homem

puro

.

.

.

 

já que a cada hora

seu mundo me esquece

jogo fora um poema

a seus pés mudos

como uma prece

 

tudo aqui agora

mas você nem lembra

mais da minha poesia

nossa grande obra

olha só que pena

 

como acreditasse

que a comprida sombra

de uma fé pequena

poderia ainda

salvar o segundo que sobra

do dia que finda

 

 

xerazade

 

era uma vez

a noite lenta

que não termina

 

vou te contar

a minha lenda

é muito fina

 

trama tão rara

não se desvenda

nua de cara

 

teço o que penso

quase em silêncio

lenço por lenço

 

dispo a retina

com que me olhas

suspenso

 

com a maciez

sutil de uma mão

que acaricia

 

uma por vez

as mil e uma folhas

da minha história

 

era uma vez

 

mas não agora

amanhã talvez

 

 

 

[arquivo em audio >> xerazade ]

saturno

 

um anel de fumaça

traça o tamanho estranho

do meu mundo

 

entranho o espaço e não me alcanço

o fundo

sequer um instantâneo

 

 

 

lápis lázuli

 

 

fora tudo gris

,

dentro aponto céus anis

da cor de um lápis

 

 

.

 

 

 

foto: mercedes lorenzo

 

 

selene

 

quase dia a meia-lua

ronda à tonta e não dá conta

da fase que me permeia:

não sei se mínguo ou se cresço

 

metade sou meio nova

dois terços tô mais que cheia

subo e desço um pé na areia

um na cova

 

 

a oração

 

deus deu adeus

alá ralou

brahma bebeu

 

buda debandou

oxalá se exilou

e zeus se escafedeu

 

vi meu olho na TV

e o ateu não crê

que sou eu

 

 

 

peço conselhos

a um velho sábio

e violento

 

invento o futuro :

jogo de espelhos

no céu distante

 

; a norte a sorte a sul o firmamento

; poente a oeste a leste o nascimento

; ao tempo a morte a marte o movimento

 

meço o instante

obscuro e lábil

com astrolábio e sextante

 

 

 

o relógio

 

tudo o que sei do corpo é que é preciso

 

e digo isso num sentido vário

de necessário a se saber sentido

salgado quente ardido fá vermelho

 

e ainda pelo mistério do perfeito

mísero gozo que nos arrebata

mas que não mata antes da hora exata

 

 

 

 

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