Em Janeiro uma amiga querida, que usa Vuitton, Montblanc e Cartier, convidou outras amigas que não usam nada disso (entre as quais me incluiu) para assistir a uma engraçadíssima peça que era o “must” do verão. Só conseguiu ingressos para Março. No dia da esperada sessão caiu um toró sobre a cidade e nenhuma de nós conseguiu chegar ao teatro, nem os atores. Como não houve espetáculo, as entradas foram gentilmente trocadas para o primeiro dia em que as muitas reservas deixaram 4 lugares vagos: mais dois meses na fila de espera. Assim, no mês de Maio, lá fui eu ver a comédia aguardada desde Janeiro, o maior sucesso da temporada, referendado pela avalanche de público.
A peça era muito ruim. Aquele ruim além do tolerável que sempre me dá uma sensação de vergonha, me deixa tão constrangida que não consigo olhar para o lado e tudo que quero é sair correndo antes do final para poupar os atores da minha presença durante a vaia. Foram entusiasticamente aplaudidos. Saímos em trajeto mecânico pelos corredores do Shopping da Gávea, comemos e bebemos mal nos cafés ainda abertos e cumprimos o ritual da mediocridade até o fim. Ninguém ousou dizer que a noite foi uma droga: há pouca vida na Terra.
Georgi Gurdjieff escreveu um livro curioso, Relatos de Belzebu a Seu Neto, um calhamaço de mais de mil páginas, sobre a visão do homem na Terra por seres de um mundo distante. Alforriado de penas e pecados da juventude por Sua Eternidade, e depositário de vasta experiência, Belzebu conta para o neto como é a vida mecânica naquele planeta insignificante, orbitando uma estrela de quinta grandeza.
Gurdjieff era um russo grandão, do final do século XIX, que cedo embarafustou pelo mundo à procura de tradições de sabedoria e acabou dando com os costados no Oriente Médio, por onde vagou durante vinte anos, já que era homem de ação e a sabedoria deveria estar na vida e não nos mosteiros. Sua busca de juventude pelo conhecimento oculto e o propósito da vida humana virou filme de Peter Brook, com o título de uma de suas obras, Encontros com Homens Notáveis. Voltando do Oriente foi morar na Europa, onde se dedicou a escrever e divulgar o seu sistema, no qual o corpo, a mente e as emoções trabalham juntos para despertar a consciência e induzem o homem a não ser jamais um espectador de si mesmo.
Apesar de atrair alunos de todas as partes do mundo, Gurdjieff não se considerava um mestre e sim um “despertador de homens”. E investia contra todas as formas de “adormecimento”. Talvez a mais importante conclusão a que tenha chegado, no seu estudo do lado oculto das religiões, é que o homem é quase inteiramente mecânico. Não só o homem é basicamente uma máquina que apenas responde ao meio ambiente como é um erro imaginar que possuímos alguma individualidade. Possuímos dezenas, talvez centenas de “eus”, por isso é tão difícil ser consistente. Um “eu” toma uma decisão no ano novo, outro “eu” poucas horas mais tarde decide quebrá-la.
Gurdjieff também tinha fama de zangado. No seu centro de iniciação à consciência, freqüentado por intelectuais da época como Katherine Mansfield, que depois escreveu sobre ele, mais expulsava do que aliciava alunos porque nunca se sabia se suas respostas refletiam o que pensava ou eram dadas ao contrário, para confundir o carente. Escreveu muito, mas seu grande livro – em que mistura ficção com filosofia e ensinamentos secretos de religiões orientais – é sem dúvida Belzebu.
Lá é dito que o conhecimento é matéria, por isso não pode ser guardado indefinidamente: se uma pessoa se apropriar de certa quantidade de conhecimento, como de certa quantidade de comida, as outras terão menos. Portanto, ser não é saber.
Mas, “o homem está numa prisão, da qual só pode escapar se admitir que está preso, e o plano para a libertação requer um estudo cuidadoso da planta da prisão”. Portanto, para ser é preciso saber.
O propósito do seu método era romper o automatismo. O homem acredita que vive porque ri, chora, se emociona e sente culpa; na verdade, diz Gurdjieff, estas reações são pouco mais do que respostas automáticas a certos estímulos definidos. Meros reflexos. O homem vive sem nunca se perguntar por que faz como faz, olhando para o lado em busca de modelo em outros que também estão olhando para ele em busca de modelo e muito poucos saem deste círculo e correm o risco de reinventar a máquina. Até que morre de maneira mecânica e dizem dele que foi um bom homem porque não deixou pegadas.
Quando seu neto lhe pergunta: “- Então, não há vida na Terra?”, Belzebu olha aquele ponto minúsculo no espaço e responde: “- Muito pouca”.
Há vida na Terra?
Jun 6th, 2003 by Maria Helena