Inventamos desculpas rápidas que nos absolvem quando erramos na profissão, no casamento, no voto, e não encontramos perdão para os desacertos com os filhos. É que criá-los leva muito tempo. E não os criamos com o que fazemos – nossos gestos ensaiados para representar uma boa mãe (ou um bom pai) se perdem no longo cotidiano. Marcamos os filhos apenas com o que somos. O que é lamentável, já que podemos pensar em substituir atitudes erradas por outras, mais eficientes, mas continuamos a ser quem somos; para o bem ou mal dos nossos filhos.
Na semana passada, uma das minhas filhas – a do meio – escreveu neste sítio sobre a sua mãe. Passei a semana remoendo os laços tão estranhos que nos ligam às nossas crias.
Pensei em escrever uma Carta à Filha, não kafkiana, em resposta à coluna do Dia das Mães. Mas preferi transcrever o capítulo de um livro.
Anos atrás, escrevi um livro com uma filha, essa, a do meio.
Sinopse: “separadas por alguns meses, porque a mãe dava um curso em outra cidade, mãe e filha adolescente trocam e-mails enquanto jogam, por correspondência, uma partida de xadrez”.
Cada uma de nós escrevia um capítulo (uma carta), dava um lance da partida, e a outra deveria responder, compondo o livro.
Aqueles meses foram um pega pra capar, era ficção e não era, botamos nossa história em dia.
Como só a Christiana tinha Internet – sou relutante às modernidades – nossos textos eram levados de uma casa à outra pela faxineira comum, ou seja, mensageiro, a mais antiga modalidade da comunicação. Anterior ao correio. Estávamos, mesmo, mexendo em coisas muito velhas.
Em resposta à coluna da Christiana, um pedaço do Jogo de Damas. Que ela conhece bem porque o escrevemos juntas. Revide de mãe, é claro. E pedido de desculpas, pois sou apenas quem sou.
“… No Jardim de Infância você era a “repetidora”, o que causou alguns problemas. Uma vez a psicóloga mandou me chamar, a escola estava preocupada com a nossa estrutura familiar.
Nessa época você não dormia sem que alguém contasse uma historinha e seu pai não tinha memória para lembrar nem imaginação para inventar, me ligava aflito, quando você passava o fim-de-semana com ele, perguntando o que é que tinha acontecido mesmo com a madrasta e as irmãs da Cinderela, e você de olho aceso na cama, esperando pelo final.
Depois de esgotar João e Maria, Chapeuzinho Vermelho e o Gato de Botas, seu pai passou a desfiar histórias bíblicas (era mais fácil para ele mas você só tinha 4 anos!). Um dia tropeçou numa ponta solta de carpete, quase se esborrachou no chão, você caiu na gargalhada e a instrutiva história daquela noite foi a das filhas de Noé, que “mesmo vendo o pai nu e bêbado não riram dele, como os outros filhos, e ainda lhe deram uma manta para se cobrir”.
Não deu outra. No dia seguinte, na “rodinha das novidades”, você contou para a professora que nunca ria do seu pai quando ele chegava em casa nu e bêbado.
A psicóloga queria que você fizesse terapia para filhos de alcoólatras. Por mais que eu afirmasse que seu pai era abstêmio, não acreditaram. Eu dava detalhes: quando saíamos ele pedia milk-shake, eu é que pedia chope, e os garçons sempre colocavam o leite na minha frente e o álcool na frente dele. Podia ter muitos defeitos, até tinha, mas não esse – só bebia leite, o que para mim era um defeito, como continuar casada com alguém que come feijoada com milk-shake?
Aos 6 anos você era “líder”, gostava de espinafre e esmurrava os garotos da turma.
Aos 9 era “Maria-vai-com-as-outras” e telefonava mil vezes para Silvana, Fabiana e Luciana para saber com que roupa iam para o colégio, qual a cor do elástico do cabelo, se devia usar brinco ou não, tudo tinha que ser igual, os cadernos, a agenda, o tênis, a calcinha. Eu não acertava nunca e você chorava a cada presente que eu lhe dava, “não posso usar, ninguém tem uma mochila igual a essa”.
Aos 10 era “protetora de animais”, usava a camiseta da associação e trazia para casa gatos e cachorros abandonados, hamsters e tartarugas maltratados no play-ground, fora filhotes de aranha e “abelhinhas perdidas da colméia”. A casa fedia, por mais que eu mandasse a Nilza passar desinfetante de eucalipto no chão todos os dias.
Aos 11 você salvava os mendigos da porta do colégio e limpava a geladeira. Junto com a carne assada, o arroz e o feijão, ia o meu frango do regime e o iogurte dietético. Da casa do seu pai levava meias, cuecas, suéteres e, uma vez, duas gravatas italianas. Neste dia ele ligou muito bravo, nem te chamei, e, se pudesse, se divorciava de mim pela segunda vez.
Foi uma longa noite de debates, quando você quis trazer o mendigo que cheirava éter para morar conosco: “tão bem-educado, mãe, tem até o segundo grau, ficou assim depois que a mulher morreu”. Eu votava contra, você a favor; e o nosso democrático plebiscito sempre terminava empatado. Até que eu tive que instaurar a ditadura.
Quando fez 13 anos você entrou para uma academia de ginástica, queria malhar para ser surfista. Aos 13 anos e 2 meses abandonou a academia, deu as malhas para a filha do porteiro e foi fazer meditação zen. Aos 14 começou a fazer teatro, aos 15 continuou… o teatro está durando.
Não pára não … continua sendo Desdêmona, Miranda, Julieta… eu reclamo porque sou sua mãe e mãe sempre reclama, bolas, mas eu gosto. Gosto dessa bagunça em casa, do entra e sai, das minhas roupas divididas com o elenco e do meu batom que acaba numa tarde. Vou continuar reclamando e aplaudindo, sentada na primeira fila e dizendo para quem está do lado: – Está vendo aquela bonitinha, com laço verde nas tranças, vestida de Julieta? É a minha filha.
Gosto do seu jeito e do seu grupo, dos que fazem manifesto, teatro, às vezes são reprovados, tomam porres, enfrentam os padres. Podem não ser os filhos mais fáceis mas são os que fazem mal principalmente a si mesmos e não aos outros.
Vocês, como o resto do mundo, tentam equilibrar todos os dias o que têm para dar e o que esperam receber. Alguns, a maioria, correm atrás do que é bom para si, ainda que seja péssimo para os outros: são os competitivos, os que arrasam o adversário, os que se dão bem a qualquer preço. Estes talvez causem menos inquietação aos próprios pais – são os vencedores.
Seu grupo não se preocupa em se dar bem mas se ocupa em dar alguma coisa de bom, não lucra nada com isso mas tem um enorme prazer em fazer as suas peças, compor as suas músicas, escrever sua poesia – são os indispensáveis.
Tento botar seu pé no chão, às vezes tenho medo que você saia voando, caia lá de cima e se esborrache. Mas detestaria ter uma filha que vivesse só na terra, atolada no bom-senso.
Não fique triste, o sonho não acabou, é só o ano que está acabando. E no ano que vem você encontra amigos novos, a gente sempre atrai o semelhante. E vão invadir a casa de novo, e depenar o meu armário,
eu vou reclamar e vai ser de mentirinha, e você vai crescer parecida com a filha que eu sempre quis ter.
Hoje de manhã, enquanto guardava roupas e jogava papéis fora, pensei no que iria pedir quando o avião levantasse vôo, porque procuro sempre um lugar mais alto para rezar, no final do ano, nem que seja subindo numa cadeira, já que tenho a certeza de que Deus nos vê e nos ouve mas não habita entre nós, nesse mundinho podre, paira lá por cima. Como nem tenho uma religião mas me entendo com Ele e procuro seguir Seus mandamentos, queria aproveitar as alturas e fazer alguns pedidos, como todo filho faz.
Batalhar, sofrer, chorar, ter medos grandes, pequenas alegrias e nunca possuir a certeza de como será o dia de amanhã, é parte da realidade de quem está vivo, já me acostumei e nem peço para nós destino diferente – tenho pedido luz para te criar direito. Mas pensava num pedido único, definitivo, que resumisse o que realmente é importante, valesse para os próximos anos, até o fim da minha vida, e garantisse a minha felicidade.
Não consegui pensar nada de novo, só me ocorreu a reza de sempre, filha, o que peço a Deus todas as noites, desde o dia em que você nasceu: Ele pode me tirar tudo, eu vou esbravejar mas agüento, só não me leve você. E que a gente siga… com carinho, com raiva, com crises, com acertos e arrependimentos… MAS JUNTAS! Porque eu gostaria de ficar perto de você numa vida nova e em todas as outras vidas, se fosse possível.
Acho que amor é isso.
Mãe”
Jogo de Damas
Apr 17th, 2004 by Maria Helena