Quando Isadora Duncan apareceu em Paris, Cecille tinha acabado de chegar ao topo. O ponto mais alto de sua carreira, um caminho de suor e dor, que teve início quando a Preparadora Ivanovna – que foi a segunda mais temível de toda a história do Corpo de Baile da Ópera de Paris – reparou que a filha da humilde camareira Josephine tinha os “pés perfeitos”. Olhou bem fundo nos grandes olhos amendoados da criança – aquela magricela que inda há pouco dormia enroscada nas cortinas adamascadas da coxia – e proferiu seu parecer mais como ameaça que bom augúrio:
– Deus concedeu-lhe a Graça dos pés perfeitos para o ballet. É um dom raro, que pode levá-la à frente deste grande palco! Mas não se iluda: talento não é tudo. Para chegar a ser uma estrela você tem que ser a melhor dentre as melhores. Para tanto, deve estar disposta a sofrer todos os dias de sua vida em nome da Arte. Você aceita o desafio?
Aquilo pareceu à pequena uma espécie de chamamento divino, uma revelação. Ela, que até então era apenas um estorvo para sua mãe, percebia que tinha um dom, que fora ungida com uma qualidade especial. Agora ela tinha uma vocação, um talento e, finalmente, um futuro…
– Aceito.
Tinha cinco anos nessa época. Ivanovna começou imediatamente a treiná-la, com a rigidez que lhe era característica. Era estúpida e humilhava as alunas, que freqüentemente choravam, protestavam e, não raro, desistiam. Mas Cecille suportava tudo com resignação. Se o sofrimento era o caminho da Arte, chegaria ao mais alto nível que seu corpo e sua alma pudessem aguentar.
Em poucos anos já era uma das melhores de sua geração, segundo a própria preparadora que, a despeito de sua secura, quase gostava da pobre filha da camareira, que possuía essa determinação incomum (além dos pés perfeitos!). Tinha lesões frequentes nos músculos e feridas nos pés, por excesso de treinamento, porém nunca interrompia os exercícios, sublimando as dores intensas com a perseverança - esse vício dos fortes, dos raros, os que jamais desistem de um objetivo. Deus está vendo!, pensava ela, e abria, puxava, subia, saltava e girava, girava, girava…
Costumava treinar na primeira fila, porque sempre executava corretamente os exercícios, mesmo as seqüências mais longas e complexas – memorizava de primeira. Esta qualidade foi percebida e admirada por todos quantos vieram algum dia a treinar com ela. Sua concentração imperturbável, a disciplina férrea e a obsessão pelo movimento perfeito ainda potencializavam a natural aptidão, de modo que jamais errava, mesmo nos ensaios.
Seu corpo todo desenvolveu-se em consonância com os pés. Cada uma de suas medidas proporcionava-se com as outras de modo ideal, como se projetadas por precisa engenharia divina especialmente para a dança clássica: seu tronco era esguio, os seios pequenos, os braços longos e suaves, o pescoço elegante encimado pelo rosto encantador, o belo sorriso, os olhos amendoados, os lindos e compridíssimos cabelos cor de mel impecavelmente trançados e presos num grande coque na altura da nuca. Sem falar nas pernas, admiravelmente torneadas, arrematadas pelos pés perfeitos.
Sua técnica era sólida, precisa, virtuosa. Sua abertura era impressionante; seus saltos, que não faziam o menor barulho no assoalho, eram apontados por Ivanovna como exemplo de leveza para todas as novatas. Seu arabesque inscrevia no ar uma curva perfeita, seus braços mantinham a angulação e o alongamento mesmo nos momentos mais difíceis. E tudo isso sem jamais perder a postura ou deixar de sorrir.
Ela tinha tudo para ser a melhor. Estava em franca ascensão nas linhas do corpo de baile e, na ocasião em que a excelente Marie-Therèse, já beirando os 30, abandonou a carreira para ter um filho, Cecille, então na exuberância de seus 18, teria assumido naturalmente seu lugar. Não fosse o azar de ter chegado naquele mesmo ano à companhia a menina-prodígio russa Olga Olenska, dois anos mais jovem, e treinada sob os rigorosos métodos do Teatro Bolshoi. Ela também tinha os pés perfeitos. Corria o boato – e não sei se é verdade – que seus pais, ambos bailarinos, exercitaram suas pernas desde o berço, e que seus primeiros sapatinhos foram sapatilhas de ponta, para que os ossos consolidassem na fôrma adequada.
Olga roubou para si a cena e o ambicionado posto de primeiríssima-bailarina, na temporada seguinte de Giselle. Cecille dividiria com ela o papel, mas faria as récitas menos importantes: o segundo dia, a matinée de domingo, as quartas e quintas-feiras. Não seria comentada pelos críticos nem vista pelas personalidades importantes, os formadores de opinião. E, de fato, ela dançou perfeitamente bem seu papel, recebeu muitos elogios dos colegas, mas passou despercebida para o público e a imprensa.
Paris não falava de outra coisa, todos queriam ver os saltos sensacionais de ‘ la Olenska’. A própria treinedora Ivanovna, já perto de se aposentar, parecia ter perdido a fibra, e rendera-se aos encantos de sua jovem conterrânea. Se não chegava a fazer elogios durante os ensaios, a observava com um ar embevecido, e jamais gritava ou fazia suas ríspidas correções. Cecille ficou enciumada, mas não era de se abater com as dificuldades, então meteu na cabeça que superaria Olga em todos os pontos, e provaria a Ivanovna e ao mundo o valor da formação francesa e dos pés congenitamente perfeitos. Prometeu a si mesma que, no ano seguinte, dançaria o papel principal na récita da estréia, e sua pobre mãe teria o orgulho de guardar para a posteridade um exemplar dos jornais, que trariam em letras garrafais: “Paris cai aos pés de Cecille Druot!”
Naquele ano ela treinou mais que nunca, aumentou de 8 para 10 horas sua rotina diária de exercícios. Estendeu em alguns centímetros sua já excepcional abertura, e perdeu mais 3 quilos, para que seu partner a suspendesse como uma pluma nos pas-de-deux. Cecille agora era mais-que-perfeita.
Olga por sua vez, como tantos prodígios meteóricos, parecia consumir-se em sua própria chama. Já durante a temporada, envolveu-se com Jean-Pierre, o jovem terceiro-violino da orquestra que, desde os ensaios, suspirava por ela, embora fosse casado e pai de um bebê de poucos meses. O tórrido romance, sem esperanças de consolidar-se numa tranqüila relação marital, assumiu a urgência das paixões proibidas, devorando as noites e a saúde da moça. Num dia em que ela estava particularmente abatida, teve uma queda espetacular ao aterrissar de um grand jeté, no solo do segundo ato.
– É preciso bem mais que talento para ser primeiríssima-bailarina do palco mais importante do mundo!… – pensou Cecille, que assistia a todas as récitas da rival. Mal conseguia disfarçar a satisfação. Sabia que era chegada a sua hora.
De fato, no ano seguinte, foi sua a Grand-Premiére: O Lago dos Cisnes, interpretando a protagonista Odette/Odile – seu papel predileto, pelo desafio técnico que representava. Ela teria a oportunidade de exibir seu virtuosismo ao realizar com a habitual perfeição a dificílima seqüência de 32 fouettés que, anos antes, alçara à fama a italiana Pierina Legnani. Cecille estava no auge da forma, estava pronta para seu grandioso destino!…
Rezou muito, com intenso fervor, para expressar sua gratidão, e até encomendou uma missa. Sua mãe, que não cabia em si, pagou uma novena e prendeu, no avesso do figurino, uma medalhinha do Divino Espírito Santo, para proteger a filha da inveja das outras moças.
A estréia foi impecável. Cecille esbanjou perfeição em cada fundamento: equilíbrio absoluto, sicronia precisa, extensão e leveza nos saltos, elegância no port-de-bras, maestria nos mínimos detalhes. O mais rigoroso crítico não seria capaz de apontar-lhe uma falha sequer. Sébastien, seu partner, cometeu um pequeno deslize ao fazer-lhe a base de um rond-de-jamb , motivo pelo qual ela quase tirou-lhe o couro na coxia, durante o intervalo, mas ela conseguiu contornar o imprevisto com tal destreza que nem Ivanovna percebeu.
No final, os aplausos duraram 12 minutos e meio, quase um minuto a mais que os da estréia de Olenska! É a consagração, pensou Cecille Druot em sua noite de glória. Mal conseguiu dormir. No dia seguinte, esperou ansiosa pela edição vespertina dos jornais.
Chegou enfim o pacote, com as letras garrafais:
Paris cai aos pés de Isadora!
Isadora Duncan, a americana? Não pode ser,
dizem que ela dança descalça, com os pés grotescamente flexionados, e é incapaz de um attitude!
O que ela tem, afinal, que arte é essa que qualquer criança pode imitar? Em que mundo nós estamos, para onde terão ido os séculos de desenvolvimento do ballet? Para a lixeira de um modismo!
…
Os críticos podiam render-se às inegáveis qualidades de Olga Olenska, isso era algo com que ela podia lidar até como um estímulo, mas tecer loas a uma novidadeira… era revoltante, e profundamente injusto.
No entanto, Paris não falava em outra coisa. Isadora arrebatara os corações de público e críticos. Apresentava-se em salões e outros espaços não-convencionais, e sua dança livre arrancava aplausos por mais de trinta minutos, por dias seguidos…
E nem uma linha na primeira página sobre a gloriosa estréia de Cecille. Lá dentro do jornal, espremida num canto da página que estampava fotos de Isadora, a crítica à estréia do Lago dos Cisnes:
”… a técnica irretocável de Cecille Druot, se impressiona, não emociona. Cumpre sua função com a frieza sorridente dos que acreditam que a perfeição formal possa substituir a graça espontânea de um corpo feliz. Dos que não têm a grandeza da expressão autêntica, e nem a ousadia de arriscar-se ao erro em público. Uma interpretação artificial, desprovida de carisma, daquelas que a história tratará de encobrir sob o manto inexorável do esquecimento…”
Injustiça ou não, o fato é que o público, bem como a duração e a intensidade dos aplausos, foram decaindo a cada apresentação, sepultando, noite após noite, os sonhos de grandeza de Cecille. O último espetáculo da temporada ela dançou chorando, embora sem lágrimas, e mantendo, como sempre, o sorriso estampado.
Na montagem seguinte, Olenska, já curada de seu malfadado romance, recuperou o posto de estrela da companhia, no qual permaneceu por mais 15 anos, até voltar para Moscou, grávida de um trapezista cigano.
Cecille, para quem dançar nunca fôra um prazer, e que só se importava em ser a melhor dentre as melhores, teve que se conformar com a posição de segunda-bailarina, um lugar que, em si, seria uma honra para qualquer outra, mas que, para ela, era sinônimo de fracasso. Externamente, mantinha a disciplina e a postura de sempre, mas seu coração, já pouco caloroso, congelou por completo. Com o passar dos anos e a ascensão das novas gerações, caiu para os segundos-papéis.
Quando se aposentou dos palcos, aos 36 anos – antes de começar a fazer papéis de bruxas velhas e animais bizarros, como explicou à mãe – tornou-se preparadora, substituindo a gentil Mme. Geneviève, sucessora de Ivanovna que, para seu gosto, era muito frouxa com as novatas, comprometendo seriamente o nível técnico do corpo de baile.
Ao assumir a nova função, Cecille resgatou os métodos da russa: sua exigência sobre-humana, sua rispidez, seu proverbial mau-humor. A Preparadora Druot – como ficou para sempre conhecida - foi a única a superar Ivanovna no índice de rejeição dos alunos, e acabou por tornar-se uma lenda nos bastidores. Marcou profundamente toda uma geração que, a despeito da excelência técnica, teve os mais altos números de abandono da profissão. Quando alguém ria ou conversava durante os treinos, era implacável. Uma vez expulsou uma talentosa e falante bailarina, que deixou escapar uma gargalhada num ensaio geral:
- Quer brincar de fazer ballet? Pois vá dançar descalça no olho da rua!
E acabou com a carreira da moça, sem pestanejar e sem perder um minuto de sono, nem mesmo quando todo o grupo veio pedir-lhe que desse uma chance à garota, que estava inconsolável e prometera emendar-se. Mas ela não era pessoa de voltar atrás em uma decisão.
Não casou nem teve filhos. Cuidou da mãe, que ficou cega e inválida, mas viveu para enterrá-la. Morreu aos 59 anos, dormindo.
No dia seguinte, foi cancelado o treino da parte da tarde, na Ópera de Paris, para que os integrantes do Corpo de Baile pudessem comparecer ao enterro da Preparadora Druot – cujos pés, no caixão, deformados pela artrite, eram uma caricatura grosseira da perfeição de outrora. Mas o rigor cadavérico não a traiu, e entregou-os à posteridade perfeitamente esticados numa ponta eterna. Sua mãe calçou-lhes, a muito custo, as sapatilhas daquela noite gloriosa. Isso pouca gente viu, porque a maior parte dos bailarinos preferiu dar destino menos funesto à rara tarde de folga.
Esta foi a história esquecida de Cecille, a bailarina perfeita, a quem Deus não concedeu a Graça dos pés felizes de Isadora.
A dança é a música da alma, precisa ser sentida na sua essência, a técnica é importante para ajudar o corpo a movimentar-se com mais destreza, força, leveza… Isadora tinha isso tudo, os pés descalços eram perfeitos. Parabéns por esse lindo conto, retrata bem o universo da dança! Bjsss