Capítulo I A Carta
O verão de 1918 foi muito abafado. Especialmente agora, sob o mormaço do meio-dia que tingia a paisagem lá fora num tom ofuscante de cinza chumbo. Metal ardente. Como ardia também em brasa o coração da jovem Frederica Eugênia, que em vão se abanava, perto da janela, deixando no ar o aroma suave de seu leque de sândalo. Derretia sob o vestido preto e fingia consternação diante do corpo inerte de Eulógio Sepúlveda, Barão da Grota Funda, seu nem tão amado avô. Ainda que pouquíssimo estimado pelos que o conheceram, Eulógio havia amealhado fortuna suficiente para comprar uma legião de falsos amigos. Estavam todos lá, inconsoláveis, carpindo. Frederica Eugênia, à falta de lágrimas, usava o lenço de cambraia para enxugar a testa, misturando ao sândalo um leve olor de alfazema. Seus olhos buscavam, dentre a multidão de hipócritas, o único semblante capaz de refrescar-lhe a alma. Ao encontrá-lo enfim, quase não conseguiu conter um sorriso desabrido demais para a ocasião. Abaixou a cabeça e esperou que ele se aproximasse. O coração aos pulos só de pensar que iria abraçá-lo, mesmo sabendo que seria apenas um abraço de pêsames.
Pancraciozinho aproximou-se e depositou respeitosamente um ramalhete de cravos-de-defunto no único espaço livre que encontrou no caixão coberto de flores: ao lado da orelha esquerda. Fez o sinal da cruz, fechou os olhos e começou a rezar em voz baixa mas alta o suficiente para ser ouvida por quem estava por perto: Ave Maria, gratia plena, dominus tecum…
– Como é culto murmurou Dona Hermengarda, mulher do Dr.Silveirinha. Reza em latim.
– Estudou no Caraça, um excelente colégio, padres severos, como convém. disse Altamiranda, filha mais velha do Barão. Depois cursou a Faculdade de Direito de São Paulo, muito conceituada. Sempre teve do bom e do melhor: hospedagem em pensão fina, livros, roupas, além de uma mesada.
– Eu sei, eu sei Dona Hermengarda não tirava os olhos do belo rapaz. O que esta família por ele foi mais do que caridade. Sobretudo sendo filho de quem é, pobrezinho
O falecido era mesmo um homem muito generoso.
– Papai fazia tudo bem-feito suspirou Altamiranda Foi um grande homem.
– Um grande homem, Deus o tenha Dona Hermengarda completou, fazendo o sinal da cruz, porque a Ave Maria chegara ao fim e Pancraciozinho se persignava, compungido.
– Vou à cozinha, senão nada sai a contento. Tenho que alimentar esta multidão e preciso conferir o estoque de vinho do Porto. disse Altamiranda. Com licença.
– A senhora deve estar exausta, quer alguma ajuda?
– De maneira alguma. Altamiranda respondeu, um tanto secamente. E acrescentou, já se afastando. A dona da casa tem sempre responsabilidades, nas horas tristes e nas horas alegres.
– É verdade, é verdade.
Dona Hermengarda afrouxou a gola do vestido de velórios, de seda cinzenta e mangas compridas, e também abriu o leque. Muito melhor do que vinho do Porto seria uma limonada gelada mas uns biscoitinhos viriam em boa hora. Faltavam quase duas horas para o enterro e Silveira fazia questão de acompanhar o féretro, o Barão era seu paciente mais antigo. Também lhe recomendou que rezasse mais, conversasse menos e mantivesse uma postura sentida.
– Mas não preciso chorar, ó Silveira.
– Não, não precisas. Mas deves evitar o riso e a tagarelice.
Dona Hermengarda afastou-se do caixão, onde já estava há tempo suficiente e só se podia falar aos sussurros, e foi procurar alguém que a ouvisse. Preferia puxar conversa com Pancraciozinho mas ele estava ocupado, retirando da orelha do falecido algumas formigas que escaparam dos seus cravos, e ela preferia manter distância de defuntos. Viu Abílio, o filho caçula do Barão, sentado a um canto numa cadeira de balanço e envolto em mantas, apesar do calor insuportável.
– Meus sentimentos, Dr. Abílio. Está melhorzinho?
– Escapei da peste, Dona Hermengarda, graças a Deus. Já meu pai, coitado…
– Deus dispõe, Dr. Abílio. E Dona Margarida, como está?
– Na mesma. E mais não disse, voltando o olhar vazio para a pequena multidão ao lado do pai.
A mulher de Abílio não havia descido para velar o sogro nem era vista por ninguém, há vinte anos. Dona Hermengarda morria de curiosidade de conhecer Margarida, a Louca, como era chamada à boca pequena. Silveira lhe dizia que ela continuava muda e catatônica, com medo de sair do quarto, e não trocava palavra com ser vivente, nem com ele, seu médico de tantos anos, nem com o marido e nem mesmo com Frederica Eugênia, sua filha única, tão linda e tão loura quanto ela fôra um dia. A conversa com Abílio não ia prosseguir e Dona Hermengarda procurou o marido. Silveira estava na sala de jantar e Altamiranda lhe oferecia um prato de mães-bentas.
– Acabaram de sair do forno, Dr. Silveira. Coma antes que eu leve para o salão.
– Obrigado, basta-me o Porto. E a senhora, já se alimentou hoje?
– Desde ontem não me desce nada, nem meus chás informou Altamiranda, levando o lenço aos olhos. Preciso voltar à cozinha, com licença, estão corando os pastéis de nata.
Dona Hermengarda se aproximou do marido:
– Por que não aceitou a mãe-benta?
– Não gosto de doce, bem sabes.
– Mas eu gosto.
– Então vai atrás de Altamiranda e te serve, o que não falta é comida na casa do Barão.
– E ela, continua só comendo salada e tomando chá?
– A ancas de Altamiranda são um mistério para a Ciência. Nunca a vi comendo nada que não fossem folhas amargas e engorda a cada ano, já deve passar dos 100 quilos.
– Ela me disse que o ar a engorda. A mim, são os doces. Vou mesmo atrás dela esperar os pastéis de nata.
Mas não deu dois passos e voltou para perto do marido, abotoando a gola até o queixo. Arsênio José, filho do Barão, acabara de chegar de viagem e estava com Altamiranda num canto, se inteirando dos últimos momentos do pai.
Olha quem está aí, ele sempre me dá medo. Vou ficar perto de ti.
– Que cisma, mulher! É um pobre viúvo, um solitário.
– Não é cisma, é intuição. Não gosto dele, me dá calafrios.
– Não sejas tola, Hermengarda, comporta-te. Vamos cumprimentá-lo.
– Ai, não me deixes só, Silveira, enquanto este homem estiver por perto.
– Hermengarda, por quem sois… E Silveira puxou-a pelo braço.
Mas antes que alcançassem Arsênio José, que se dirigira à eça armada no centro da grande sala de estar, uma freira entrou rapidamente no palacete de São Cristóvão, não falou com ninguém e se aproximou do caixão. Olhou bem para o Barão, para se certificar de que estava morto, deu-lhe as costas e virou-se para os presentes:
– Cá estou em nome de Violeta Flores, que os senhores bem conheceram
As mulheres pararam de se abanar e os homens pousaram os cálices de Porto.
– Ela pediu-me um último favor em seu leito de morte: no dia em que o Barão da Grota Funda entregasse a alma a Deus, eu deveria lembrar a todos que é preciso fazer Justiça. Antes que a partilha dos bens seja feita, deve ser revelado o segredo da carta que foi entregue à sua irmã Margarida, juntamente com o órfão Pancraciozinho.
O burburinho espalhou-se como rastilho de pólvora: Que carta? Que segredo?
A freira afastava-se em direção à saída:
– Minha promessa está cumprida.
Altamiranda trincou os dentes:
– Quem é esta mulher?
Pancraciozinho apoiou-se na parede, enxugando a testa:
– Benedicta tu in mulieribus
Mamãe!
gritou, enfim.
E caiu.
Auxiliadora, a velha ama, interceptou a freira à porta da rua:
– Irmã Semíramis, fui eu mesma que levei o menino à Dona Margarida. A senhora mo entregou em mãos, está lembrada? Não havia carta alguma.
– Engano seu. Eu a escondi num forro falso por dentro das roupas do petiz. Quem trocou o menino pela primeira vez?
Auxiliadora recorreu à memória daquele estranho dia. De fato, logo após receber a criança, Margarida pediu que ela descesse para esquentar água, queria dar um banho no pequeno. Quando estava ainda pondo lenha ao fogão, ouviu os gritos e subiu correndo. Margarida já estava transfigurada e abraçava uma boneca aos prantos. Desde esse dia , ela só fazia chorar, gemer e balbuciar: a carta, a carta
Como estava claramente insana, ninguém acreditou que existisse mesmo uma carta. Altamiranda dizia sempre que ela devia estar se referindo a cartas de baralho, que os ciganos usam para suas adivinhações demoníacas. Era sabido que as irmãs Flores, como eram chamadas, tinham parentesco, ainda que longínquo, com ciganos.
Mas agora, com a revelação de Irmã Semíramis, a coisa mudava de figura e tudo começava a se encaixar
A carta… Afinal, o que revelará a carta?
Não perca o próximo capítulo desta emocionante história.
Aqui eu, cheia de boas intenções, a querer atualizar minha leitura de seus posts (quem mandou ter torcicolo, depois Páscoa, visitas…) e imagino que virá um texto romântico, assim meio chegado à Eyre.
Entrei no ritmo e aí já não sabia se curtia a história que se adivinhava de mistério, ou se ria dos nomes inventados. Jesus! De onde vieram estes, que quase me fazem rir em pleno velório?
Aí, claro, quero saber que raios tem nessa carta e a danada me deixa numa sala cheia de gordas e magras vestidas de preto e cinza, homens engomados e já bebuns, junto ao pobre defunto, que eu torço para que continue bem mortinho…e sai da sala!
Qual é? E pode fazer isto, é?
Muito bem escrito, ambientado e com um cheiro de sachê de guarda-roupas… Hihihi!
Beijão, menina. Agora, vamos ao próximo.