Queria trazer aqui, para ilustrar o texto de minha mãe, um trecho da peça Antônio José ou O Poeta e a Inquisição (1838), de Gonçalves de Magalhães (1811 1882), considerada a primeira tragédia brasileira, e encenada por João Caetano.
Qual não foi minha surpresa ao perceber que, ainda que esteja em domínio público, e apesar da importância da obra, não é possível, ao que parece, encontrar uma versão eletrônica da mesma. Tive então que desencavar meu velho texto, uma cópia xerox em estado bastante precário, e dar-me-ei à pachorra de digitar aqui um trecho, para vosso deleite. Peço perdão pelo reduzido do excerto, uma vez que eu cato um milho danado e não sou capaz de me concentrar por muito tempo em tarefas enfadonhas de cópia. Se alguém souber onde encontrar este texto completo na web, agradeço muitíssimo a indicação.
Pois bem, vamos à peça. Nesta cena, Mariana, atriz, lamenta-se de seu destino de artista à criada Lúcia. A aia, em seu bom-senso, condói-se da triste sina da patroa, bem como de todos os escritores e poetas, como o protagonista Antônio José, um dramaturgo, ou Camões, obrigados pela vocação a dedicar-se apaixonadamente a seus ingratos ofícios, por amor à glória.
Antonio José ou O Poeta e a Inquisição
Gonçalves de Magalhães
(cena III Primeiro Ato)
(
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Mariana (Levantando-se) Vê como é difícil
O trabalho da mente, e o quanto custa
Ter um nome no mundo! Enquanto dormes
No teu leito tranqüila, eu velo, eu luto.
A noite para ti traz o repouso,
E se o dia ao trabalho te convida
Com a paz no coração deixas o leito.
Teu diurno trabalho não te cansa;
Com a paz no coração ao leito voltas.
Mas eu, quando repouso? Ante um espelho
Estudando paixões, compondo o corpo,
Mil expressões numa hora procurando,
Meus dias passo; e tu doida me julgas
Quando me vês lutar, gritar, ferir-me,
E às vezes investir-te delirante!
Durante a noite minha fronte escaldo
Junto desta candeia, que me aclara,
Sua negra fumaça respirando,
Ou medindo o salão de um lado a outro
Sempre com o meu papel diante dos olhos
Como um espectro do sepulcro erguido,
Em desalinho, pálida: e cem vezes
Primeiro a luz se apaga, que eu me deite.
Se busco o leito então, oh, que tormento!
Da cabeça inflamada o sono foge;
Nova cena a meus olhos se apresenta.
No teatro me cuido; escuto a orquestra,
Vejo a platéia, e os camarotes cheios,
Ouço os aplausos, bravos que me animam,
E com esta ilusão a vida cobro.
Mas eis que durmo, sonho, e de repente
Ao som da pateada aflita acordo.
É manhã; e outra vez começa a lida.
Oh vida! Oh ilusão! Oh meu martírio!
Lúcia Oh! Certamente que me causa pena.
Tanto eu não poderia: antes quisera
Uma esmola pedir de porta em porta,
Do que seguir tal gênero de vida.
E então por que ralar sua existência?!
Para agradar ao povo! E apresentar-se
A rir, ou a chorar, como uma doida!
Mariana Que dizes tu? Coitada! O teu discurso
Bem mostra que da glória o amor não sentes.
Lúcia Não sinto, e queira o céu que eu nunca o sinta;
Que se da glória o amor é que lhe causa
Tantas inquietações, tantas vigílias,
Desprezo tal amor. Eu de contínuo
Nas minhas orações me recomendo,
Quando me deito, ao grande Santo Antônio,
E ao meu anjo da guarda que me ajudem,
E de vis malefícios me preservem.
Só quero amar a Deus
Diga, senhora,
Porventura Camões amava a glória?
Mariana Oh, se a amava!
E que luso depois dele
Tanto amou-a?
Lúcia Pois bem, sempre foi pobre;
Na miséria viveu, pedindo esmolas,
E morreu no hospital. Senhor Antônio,
Que lhe diga o que ganha com as comédias
Que ele compõe, para agradar ao povo.
Mariana Ganha a reputação de Plauto Luso,
De um ilustre escritor, de um grande homem.
Lúcia (com ar de compaixão) Melhor fora dizer:
De um pobre homem.
Mariana E o que tem a pobreza com o talento?
Lúcia Muito; que em Portugal andam casados.
E se o senhor Antônio continua,
Já lhe prevejo um fim bem miserando.
Eu só ouço dizer que ele é jocoso,
Que faz as pedras rir: eis porque o amam.
E se não fosse a banca, e os demandistas
Que lhe dão de comer, creio decerto
Que ele morto estaria há muito tempo,
Ou pelas portas pediria esmola
Como o pobre Camões
Camões!
Coitado!!
Quando da sua sorte me recordo,
Em lágrimas meus olhos se convertem.
Pobre homem
Tão moço!
Cavalheiro,
Que pudera ter sido alguma coisa,
Dar em poeta!
Andar fazendo versos!
Errando pelo mundo; naufragando!
Vir à Lisboa, e aqui pedir esmolas;
Comer o pão com lágrimas molhado;
(com tom de piedade e compaixão)
Morrer num hospital! Eu creio vê-lo (limpando as lágrimas)
Envolto num lençol, no adro da Igreja,
Sobre a pedra estendido, ali, exposto,
Movendo a piedade de quem passa,
Que lhe atira um real para sua cova!
Oh meu Deus, que castigo!
Eu tenho um filho,
Um filho que também erra no mundo;
Faze que ele da glória o amor não sinta;
Que não tenha talento, e sobretudo
Que não seja poeta, porque possa
Ser feliz sobre a terra.
(
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Adorei, Christiana… Agradeço o seu esforço de digitar para nós!
Dei uma olhada na página da ABL. A lista de escritores membros (vivos e mortos) tem nome que eu não imaginava. E Paulo Coelho, francamente. Só se for pela tiragem. Porque pela qualidade…
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Se existisse uma ABL internética (seria a Academia Blogueira de Letras), certamente as Nóvoa teriam cadeira cativa.
Abraços
Hahaha, Ricardo, adorei a Academia Blogueira de Letras! Adorei mais ainda saber que eu e mamãe seríamos “e-mortais”! :o)))
Leila, legal que você apreciou meu esforço de digitação, eu também acho esse texto uma graça. E bem ilustrativo do triste fado do escritor, que não mudou muito desde então…
Engraçado, sei estas falas quase de cor, porque certa vez ensaiei a peça em um curso e minha memória teima em guardar esse tipo de coisa que não se sabe bem pra que serve mas, ah, é tão lindinho… e vai ficando….
É muito bom poder compartilhar esses guardados, dar a eles um sentido renovado. Portanto, sou eu que agradeço.
Beijos.
Tb me sinto na obrigação de agradecer pelo esforço!
Adorei a idéia da ABL internética do Ricardo, hehehe!
Abraços!
Boooa Chris, excelente, parabéns!!!
Beijos,
João.
Oba, João, você comentou!!!
Luiz Ricardo, não há de quê.
Beijos, beijos.