Quando César foi assassinado no Senado (porque em Roma não havia Câmara), seus algozes alegaram que ele se havia tornado um ambicioso e a ambição dos governantes leva quase sempre à tirania.
Há dois mil anos, esperava-se do homem público que fosse virtuoso; algumas expectativas são eternas. Mas César foi dominado pela ambição – portanto, deixara de ser virtuoso – e os cidadãos de bem do Senado Romano tramaram a sua morte. Entre as adagas que o derrubaram estava a de Brutus, seu aliado, sua cria, quase um filho: Tu quoque Brute, fili mihi? César também andava em más companhias.
No século XVI Shakespeare escreve uma peça, “Julio César”, em que fala sobre ambições, traições e, principalmente, sobre a volubilidade do povo. A época era elizabetana, poder absoluto nas mãos de um só monarca: poderia existir governo que visasse realmente o bem do povo ou a ambição – companheira inseparável do poder – esqueceria o povo na sua trajetória? Na peça de Shakespeare, a resposta estaria com os cidadãos de Roma.
Brutus, ao lado do cadáver ensangüentado, fala à multidão sobre a transformação do herói em tirano. Apesar da vitória nas guerras, dos tributos pagos pelos territórios conquistados e de uma inegável prosperidade, o povo começa a imprecar contra César, percebendo no herói uma falha, um componente humano que lhe retirava o caráter divino. Reconhecendo nele a ambição, anteviram uma possível tirania e aprovaram o gesto assassino de Brutus e seus comparsas, estes sim, homens virtuosos.
Brutus reforça com eloqüência o seu lugar de substituto natural de César: “E, se eu for vítima da ambição, que esta mesma adaga que destruiu César se volte contra mim”. A turba aplaude, enlouquecida. Rei morto, rei posto; o circo romano já estava armado para a sucessão.
Depois de Brutus, na mesma praça do mercado e diante do mesmo povo, Marco Antônio despede-se de César e começa dizendo que veio enterrá-lo e não louvá-lo. I came to bury Caesar, not to praise him. Em versos magníficos, Antônio comove a multidão quando fala da trajetória de César, da vida dedicada a Roma, do testamento em que lega todos os seus bens aos cidadãos romanos e termina as frases sempre com um bordão: “Mas Brutus diz que César era ambicioso; e Brutus é um homem honrado”. Homens honrados têm credibilidade.
A multidão começa a lembrar dos velhos tempos e, ao final do discurso de Antônio, já chora, lamenta o herói morto e parte à caça de Brutus para vingar César. La donna è mobile, o povo também.
A História nos conta que Brutus não conseguiu suceder a César. Seus exércitos perderam para as tropas de Otávio, sobrinho de César, que foi coroado Imperador. O morto não estava tão morto e Roma teve 12 césares, Júlio foi apenas o primeiro.
Mas, a habilidade shakespeareana nos apresenta dois discursos antagônicos que exaltam as mesmas virtudes. E os cidadãos de Roma – a quem toda retórica é dirigida porque o poder sempre precisa do povo – conseguem ser contra e ao mesmo tempo dar razão aos dois. Nada melhor do que oradores carismáticos para conduzir a massa.
Talvez os Césares e os Brutus, em algum plano (como diria Borges, muito mais tarde, sobre os adversários), sejam um só: metáforas encarnadas do poder. E os cidadãos talvez sejam sempre os mesmos. Mudando de lado a cada discurso; assistindo, há milênios, Césares não suficientemente virtuosos assassinados por homens honrados; e tendo que engolir, na linha sucessória, Calígulas e Neros.
Muito bom, Mâmi. Estamos assistindo de braços cruzados (muitos até endossando) a um apunhalamento covarde. Cada Roma tem tem o RoBrutus Jefferson que merece!
Acho que é hora da esquerda parar com divisionismos e querelas internas, o pessoal de centro ver bem a “linha sucessória” que nos aguarda e todo mundo tomar tenência antes que seja tarde, que as forças reacionárias estão assanhadíssimas e SeveNero ou Renan Calígula a gente não merece!… Deixa o Lula lá!!!
Uau! Fiquei salivando com este texto! Parabéns, Maria Helena. É por ter acesso livre a coisas assim que considero a Internet uma das melhores invenções do mundo!
E considerando alguns comentários que já li do pai da Christiana aqui também, não teria como ela não escrever bem, pelo jeito. :-)
Um beijo às duas melhores surpresas que o mundo virtual me apresentou!
Mary Helen, tu és muy sábia! “None so blind as those who want not see” diz o ditado. Eu confesso: não vejo um palmo adiante do meu nariz. Nunca vi. Para mim, votar ou não votar dá no mesmo, pois no fim os vermelhos e os pretos se embaralham, e a esperança já era!!!
Hmmmm… É que a filha andava tão bem que a gente até se esquecia que a mãe escreve tão bem quanto.
Saudades duplas.
;^)
Christiana,
Já que os nossos Brutus não são honrados, concordo com você: Vamos parar com os discursos e deixa o Lula lá!
Gostei.
Patrícia,
Um guru, amigo meu, dizia que a Internet é o avatar da Era de Aquário. E fazer de leitores desconhecidos novos amigos não é milagre de avatar?
Beijo!!
Dal, querida,
Poetas não enxergam um palmo à frente do nariz porque estão siderados com o que vêem cem anos adiante. Já eu, que não tenho a veia, confesso que gosto muito de votar. Ainda sofro de síndrome de abstinência pós 64.
Beijo!!
Léo, sumido,
Você vem rasgando seda e eu esperava que quebrasse o pau. Cadê a indignação do ombudsman?
(Vocês estarão no Rio no próximo fim-de-semana? Parece que teremos festinha de despedida aqui no solar)
Saudade também!
Brutus é nome de cachorrão.
Maria Helena. Voce fez aqui uma refinada analogia. Temos hoje não um, mas vários Brutus e a serviço de outros ainda. Vamos fazer o possivel para evitar Caligulas e Neros
Pecus,
Nem todo cachorrão é bruto. Mas todo bruto é cachorrão. Acho.
Flavio,
Não há nada (mesmo) de novo sob o sol. Se recuarmos a Shakespeare, Cervantes, Homero, vamos nos ver… lá atrás. A História se repete. Uns dizem que como farsa. Outros – talvez religiosos – afirmem uma recorrência até que a lição tenha sido aprendida. Como saber?
Talvez por isso seja útil estudar o passado. Evita grandes surpresas no presente.
Abraço!!
César, ao menos, fez alguma coisa por Roma. Uma “inegável prosperidade” disseste.
Já Lula – o alvo comparado, presumo – não merece a analogia. Futebol, churrasco, uísque importado e passeios internacionais não geraram nenhuma prosperidade.
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César não porderia imaginar a traição vinda de Brutus: “Tu quoque Brute, fili mihi?”.
Brutus era o companheiro, o aliado, o confitente, o filho.
Lula, a seu turno, aliou-se ao inimigo, à patota, ao clubinho formado por quem sempre criticou: a direita corrupta e vendida aos esteites – segundo Lula, na boa época sindicalista. Induvidosa traição. Neste caso, era questão de tempo.
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Quanto ao mais, deixem mesmo lá, o Lula. Pois Severino xique-xique seria concretização do pesadelo de todos nós.
Abraços.
Salve! Salve! Bela aula de história. Tivesse eu a graça de contar com uma professora como essa, não teria como confundir tantos canalhas e heróis(nunca sei a diferença entre eles) na hora das provas.
Para reduzir o sofrimento(eu também grudo na telinha na hora da novela da CPI) e porque chegar a esta idade sem aprender a filtrar o que há de bom seria terrivelmente triste, coleto o menos ruim.
Cá prá nós, não seria hora de também começar a evidenciar as coisas positivas que esse bronco analfabeto conseguiu? Não abraço bandeira vermelha, não! Vade retro! Mas alguma coisa está errada: ou a mídia exagera quando fala do lado bom(empregos, exportações, negócios, assistência infantil, campanha contra exploração sexual, etc, etc…), ou quando fala do lado ruim!
Não alimento avestruz, mas vamos torcer para que não paguemos em dobro!
Ricardo, querido,
César também tinha lá seus pecadilhos: Cleópatra; um ou outro legionário; dizem que certo gaulês (por Asterix quase boto minha mão no fogo, já Obelix… não sei, não).
Os vultos antigos pareciam ter mais compostura porque a História, hoje, é feita com “zoom”. E de muito perto – todos sabemos – ninguém é normal.
Clarice,
Bem que tento escrever amenidades mas não dá: não consigo pensar em outra coisa senão na turma de Brasília.
Aí, para não cair dentro da panela de feijão, como Dom Ratão, e morrer queimada de tanta raiva, venho pelas bordas, falando de Shakespeare. Mas é “neles” que estou pensando… apesar de insistir na meditação zen: a sabedoria é criada na “no mind”…
Beijo, querida!!
apoio Cesar e não Brutus… BRUTUS EH UM FILHO DA MÃE. HEHEHEHE
PODE ME HAVER AMADO CEASAR MAIS POR SER GANANCIOSO EU O MATEI
Ter comandado guerras e chefiado exércitos já é carregar muitas mortes nas costas: as do próprio exército e as da alteridade caro se aceite e se ame a alteridade. Ter um filho biológico com uma egípcia como Cleópatra é submeter um império representado numa mulher. Capaz de amar uma mulher estrangeira e um filho “estrangeiro” (adotivo) pode ser perigoso mas necessário. Dominar a Grécia sem decifrar seus enigmas idem. Apolo diz a Édipo (tragédia de Sófocles): Teu filho o matará. Depois disso só Jesus (entre Sócrates/ César/ Platão). Mas Judas foi chamado amigo depois de discípulo. Não é assassinado por 60 senadores + 1 Brutus. Os 12 e nós ficamos pra “contar” os tempos da história.