Li ontem no jornal (um meio condenado à extinção, mas que ainda preenche as manhãs de sábado de seres jurássicos como eu) uma discussão sobre o “Apelo de Heidelberg”, documento em que intelectuais europeus protestam contra a disponibilização digital dos conteúdos de livros e publicações científicas através de ferramentas como o Google Books.
Olha, eu até podia entrar nesse bonde pra reivindicar meus direitos de escritora (ainda que e-nédita) mas confesso que acho o máximo o Google Books e as possibilidades de consulta instantânea e gratuita que ele oferece. Penso que isso é o mesmo que folhear um livro numa livraria, só que no conforto do lar, o que nunca foi proibido e nunca impediu ninguém de comprar o livro, pelo contrário, só aguça o desejo e precipita a decisão de compra. Ou não, na maioria das vezes a gente folheia e depois não compra porque não gostou tanto, normal. Tem gente até que lê o livro todo de pé na livraria, ou na tela do computador. Mas só se estiver duro demais pra comprar, ou se for um leitor compulsivo, mais faminto do que permitiria seu ganha-pão. E a esses não se pode negar o direito de saber, mesmo sem ter como pagar, não é mesmo?
Então fico pensando, cá com os botões do meu teclado: Ok, o mundo está se transformando depressa demais, exigindo adaptações dramáticas, mas dá pra impedir? Faz sentido se colocar do lado dos que querem garantir reservas de mercado impondo vetos, pondo freios nos trilhos da informação? Será que nós, escritores ou pretensos, que nos achamos criativos o suficiente pra merecer a leitura de outrem, não devíamos ter talento também pra inventar um modo de sobreviver nessa nova ordem?
Não lametei nem um pouco a derrocada das mega-gravadoras, máfias superpoderosas que ditavam a trilha sonora das nossas vidas. Da mesma forma, não hei de derramar uma lágrima sequer pela agonia das grandes editoras nacionais, que têm isenção de impostos pra exercer uma função social que não cumprem – de fomentar a diversidade literária, descobrir novos talentos e contribuir para o fortalecimento da nossa cultura – e, em vez disso, se locupletam, reeditam ad nauseam obras em domínio público e, salvo raras e honrosas exceções, só investem em lançamentos de retorno garantido, como best-sellers estrangeiros ou autores de grande apelo midiático. Pouquíssimo inovam em formatos e conteúdos, e pagam aos autores uma porcentagem sobre o preço de venda que, em geral, não passa de um dígito (10% é pra autor consagrado!). Com zero de adiantamento, imagina.
O Google oferece US$ 60 por obra escaneada, mais 63% do que conseguir em anúncios, e ainda apresenta atalhos para a compra da obra… não parece tão ruim. O tempo vai dizer se este será o acordo ideal, mas pelo menos não é tão leonino quanto os contratos editoriais de praxe. O investimento deles é muito menor que o de uma editora, sem dúvida, mas o alcance também pode ser muito maior. Acaba sendo uma vitrine mais democrática que as feiras de livros e livrarias, que quase sempre excluem autores independentes e pequenas editoras. Estes terão a chance inédita de atingir leitores que estariam bem além de seus meios físicos de divulgação e distribuição.
Claro que existem aspectos negativos: o autor perde o controle da difusão de sua obra, que pode ser reproduzida sem seu conhecimento, plagiada e até deturpada, mas a verdade é que nunca se esteve livre disso. Enfim, são muitas as implicações, e de certa forma imprevisiveis, dada nossa limitada perspectiva atual. Contudo, tendo a achar que os mercados acabam se regulamentando e que a proibição de qualquer forma de expressão é sempre o pior caminho.
Temos é que repensar nossas práticas a partir de agora, e aqui peço ajuda aos universitários, e principalmente aos independentes que lutam por um lugar ao sol, porque estou longe de ter uma resposta pra essa questão: como viver de literatura nos dias de hoje?
Os músicos mais espertos estão disponibilizando suas músicas gratuitamente e capitalizando outros ganhos. Estão dando mais shows, por exemplo, pra compensar a queda na vendagem dos discos. Já os escritores ficam meio prejudicados nesse quesito espetáculo, vamos fazer o quê? Dar recital, palestra nas Flips da vida? Será que alguém vai querer pagar pra assistir? Até pode ser, Elisa Lucinda que o diga. Duvido que ela esteja preocupada com o Google Books, que não tem um pingo da sua graça brejeira. Mas o que farão os escritores tímidos? E os fanhos, os feios, os tartamudos?
Então talvez devêssemos investir mais no livro como objeto de desejo, não apenas um suporte de conteúdo. Em qualidade de papel e impressão, em criatividade editorial. Algumas gravadoras antenadas vêm fazendo isso pra garantir seus nichos, como a Biscoito Fino, que produz lindos encartes de seus cds, mini livrinhos (olha o apelo do livro aí, ó), perfeitos pra dar de presente ou, o que é melhor, regalar nosso próprio espírito.
Ou sei lá, façamos blogues. Vendamos espaço pra anúncio, como alguns estão fazendo, e sendo injustamente criticados. Eu não ponho porque acho feio. Esteticamente, não moralmente. Mas também nunca recebi uma proposta milionária (ainda!). Uma vez, pedi patrocínio a uma marca de cosméticos bonita, cheirosa e, até onde sei, politica e ambientalmente correta; achei que ia combinar com as folhinhas aqui do solar. Eles responderam gentilmente que sua política de apoio não inclui literatura, só música.
Covardia, os músicos sempre chegam na frente! Nós com o pires na mão e eles com prato, zabumba e a orquestra toda. Mas tudo bem, qualquer hora a gente acha o tom. Até lá, deixo lavrada esta modesta opinião.
É isso aí, minha gente, a literatura morreu, viva a literatura! Não seja um fim mas o início de uma era farta, de livros abertos num grande banquete. E boca livre pra todo mundo.
Imagem:Still-Life of Books – Jan Davidsz. de HEEM (1628)
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No hay vuelta…google sucks
Belíssimo texto.
bj
Por mim, sou totalmente a favor da abertura, pois moro no fim do mundo e não tenho acesso aos meus interesses se não por aqui.
Viva a literatura, viva o Google, viva a internet. :)
No hay, Googa. Agradecida.
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Viva, Palpi! Que a conexão não nos falte :)
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bjs
Não é por pouco que sou seu fã!
Vou arriscar uma resposta para sua pergunta. Há várias e ao longo do caminho certamente surgirão outras.
Assim como as pessoas que baixam músicas compram mais músicas do que as que não baixam, creio que as pessoas que leem livros digitais pagarão por eles se souberem que o autor realmente receberá boa parte do pagamento.
Sinto que a enorme maioria das pessoas que pirateiam filmes e outras mídias o fazem por entender que o artista já foi roubado pela indústria e não será prejudicado pela pirataria.
Vejo um futuro possível onde os autores deixarão seus livros disponíveis em seus próprios sites para serem baixados livremente e os leitores pagarão por eles depois de ter lido como forma de agradecimento e estímulo para que o escritor crie outras histórias.
Discordo veementemente da idéia de que a nossa espécie é criminosa por natureza e só permanece honesta se fortemente vigiada.
Os humanos só assumem comportamento criminoso quando sofrem de distúrbio ou se sentem coagidos.
Roney, concordo com você e seu ‘futuro possível’.
Alguns blogueiros já estão disponibilizando seus números de conta para os leitores fazerem contribuições. Não sei se é o melhor caminho, eu por exemplo tenho vergonha de fazer isso, mas sei lá, vai ver é uma questão de tempo ou de costume.
Agradecida pela contribuição.
Beijos.
Christiana, perfeita reflexão. Realista e generosa.
“Tem gente até que lê o livro todo de pé na livraria, ou na tela do computador. Mas só se estiver duro demais pra comprar, ou se for um leitor compulsivo, mais faminto do que permitiria seu ganha-pão. E a esses não se pode negar o direito de saber, mesmo sem ter como pagar, não é mesmo?”
Tomara que as pessoas que irão decidir sobre essas questões tenham, ao menos de leve, esse olhar generoso.