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Memórias

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Deve ser um trânsito astrológico (explica aí, Maria Helena, ou será que você foi mesmo abduzida?). Por uma série de coincidências concomitantes – isto deve ser uma redundância mas minha vida está assim, redundando sobre si mesma – tenho sido levada a exumar meu passado.
Não posso reduzir o fenômeno a um mero “efeito Orkut”, muito embora deva admitir que este clubismo internáutico teve lá sua parte na arqueologia dos reencontros (tendo sido esta, aliás, a maior, senão a única utilidade que encontrei na referida ferramenta que transforma pessoas em fichas e suas relações sociais em álbuns de figurinhas. Mas não sou mal-humorada, aderi à brincadeira, ainda que timidamente, e admito: só por esta função “túnel do tempo”, a xaropada toda já se justifica). No entanto a maré retrô parece ter um alcance mais amplo, e tenho encontrado amigos antigos na rua também, primeiros namoradinhos (já carecas, socorro!), gente do arco-da-velha.
E não só isso, a vida vem em ondas, como bem disse o santo Lulu. Recebi há algumas semanas, de meu ex-marido, uma grande remessa de fotos que eu tinha deixado por lá, nas quais eu mesma, felizmente, pouco apareço, já que na maioria das vezes sou a fotógrafa, mas que reavivaram fatos, pessoas e lugares que marcaram minha trajetória.
Também há pouco, minha turma de Teatro fez reencontro de 15 anos de formados (e eu faltei, na hora H me deu preguiça, pode? Chovia muito. Mas troquei zilhões de e-mails com essa tribo anárquica e dionisíaca, dos ditirambos de minha idade pré-clássica ).
Achei meu caderninho chinês brocado, que é mais velho do que eu imaginava, já que tem dedicatórias dos colegas do ginásio, portanto remonta aos meus treze anos. E ainda fiz, junto com meu irmão, um tour imaginário por nosso colégio dessa época, lembrando cada espaço, cada canto, os móveis, os personagens que povoaram nossa infância e pré-adolescência. Passamos mal de rir a cada detalhe insignificante que era desencavado. Ele também cultiva esse interesse bizarro pelo aleatório inútil, acho que essa doença é genética.
Então eu sofro dessa memória meio absurda, quase sólida, estou em pleno surto mnemônico e não sei bem pra quê isso serve, além de dar risada.
Eu lembro do primeiro número de telefone da minha casa. Da minha professora do maternal (e eu só tinha 2 anos!). Do refeitório da pré-escola, a toalha plástica xadrez, a bica para lavar as mãos, e cada um dos meus coleguinhas, que não encontro desde então. Vejo como num filme o pátio onde eu fazia bolinhos de areia segundo uma técnica bastante elaborada, o pé de carambola e o gosto ora azêdo ora doce de seus frutos, que me ensinaram a diferença entre verde e maduro.
Lembro de um pensamento que eu tive no banheiro de casa, lá pelos meus 9 anos, olhando para os azulejos que agora ainda posso ver diante dos olhos, e pensando em quantas coisas da minha vida eu já tinha esquecido. Então pensei que não queria nunca esquecer aquele pensamento, nem quando eu ficasse bem adulta – assim como eu quase sou hoje– pra não esquecer que eu tinha sido um dia aquela menina que pensou aquilo. Pra não esquecer de mim. E me surpreende que eu não tenha mesmo esquecido. E me dá uma certa dó de que eu, tão jovem, já fosse nostálgica.
Lembro perfeitamente de pessoas que nem me conhecem mais, recordo seus rostos, seus nomes, suas histórias, seus familiares. Não é nenhum esforço, eu simplesmente acesso as informações mais inusitadas, elas me vêm por todos os lados. Pra quê?
Às vezes fico parecendo maluca, descompassada, acenando na rua pra gente que não me acena de volta e ainda olha pra trás com cara de “é comigo?”. Ou então expresso todo meu entusiasmo ao reencontrar um amigo remoto de quem ainda me considero íntima e fico falando sozinha, feito boba. Cada vexame que só vendo.
Os outros ficam sempre parecendo muito mais ocupados com coisas importantes do que eu, que gasto meu tempo com pessoas e outras distrações. Mas já me habituei a passar por doida e perdi a vergonha de andar por aí cantando, inventando moda, olhando pra ontem e colhendo impressões a esmo. Se não são atividades das mais úteis e nem me rendem altos dividendos, também não parecem imorais ou violentas. Os loucos inofensivos costumam ser deixados em paz, e tenho me fiado nisso ao expor assim minha inadequação.
Sigo teimosamente minha trama, costurando o inconsútil, tentando me atar à vida que passa. Bordando em mim mesma um sentido em tanto retalho, um futuro em tanto passado. Nem sempre é possível escapar da solidão do nosso próprio caminho, nem sempre se pode comentar a paisagem, mostrar aquela página secreta do diário de bordo. São minhas relíquias, talvez não sejam importantes pra mais ninguém.
Lembranças não-compartilhadas são tão reais como sonhos. E acabam sendo, talvez, contaminadas por eles. Não dou garantia de minhas memórias, elas podem ser distorcidas, exageradas. Mas dou fé, as tenho. Enquanto tiver espaço em meu baú – e sempre há tanto vazio aí, um universo a preencher – vai entrando gente, idéia, afeto, imagem, música, história de verdade e de mentira. Vai ficando mais preciosa e colorida a minha coleção.
Ainda que seja invisível de fora e impalpável, há de ter alguma serventia tanta matéria insólita. Nem que seja pra escrever estas bobagens por aqui. Nem que seja pra embaralhar tudo e reeditar num sonho. Nem que seja pra esquecer quando eu despertar.

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