A propósito do feriadão cristão que nos levou ao mar, à montanha ou simplesmente à vagabundagem por quatro benditos dias, lembrei de Buda – que falava de maneira semelhante a Cristo.
Cristo disse: Não pode uma árvore boa dar maus frutos nem uma árvore má dar frutos bons. Pelos frutos, a conhecereis.
Buda disse: Não importa o que o homem faça, seus atos servem à virtude ou ao vício. Toda ação acarreta frutos.
Os dois falavam de uma velha lei do hinduísmo – anterior portanto ao budismo e ao cristianismo – a lei do karma, que regula a “ação e a reação, a causa e o efeito”. Na verdade, o karma é uma lei natural, a semente que germina é karma, mas o budismo a formulou como: “O que somos hoje é o resultado dos pensamentos de ontem. O que seremos amanhã é o resultado dos pensamentos de hoje”.
E Buda também disse que “o homem é aquilo que pensa que é”.
Gosto de fundamentar algumas afirmações dizendo que Buda disse antes. Como ninguém sabe ao certo tudo que Buda disse, o respaldo de Buda dá credibilidade ao que quero dizer. Mas Buda disse mesmo que “o homem é o que pensa e acaba se tornando o que pensou”. Ou seja, que a realidade do homem é decorrente da representação que ele faz de si mesmo e de terceiros. Seus pensamentos acabam gerando suas circunstâncias, logo, seus sofrimentos são fruto dos pensamentos que carrega.
O budismo é uma doutrina interessante porque em nenhum momento fala de Deus nem afirma a sua existência. Não é uma metafísica. A preocupação do budismo é com o homem e o sofrimento do homem.
O príncipe Sidartha Gautama aos 29 anos deixou o seu palácio, abandonou mulher e filho, e foi peregrinar pelo mundo em busca de sabedoria. No princípio seguiu uns monges mendicantes e passou um bom tempo a jejuar mas desistiu da mortificação quando constatou que ela só aumentava o apego. Começou a caminhar, observar e meditar sozinho e, muitos anos depois, se “iluminou”: tornou-se um Buda, um “desperto”.
Para Buda tudo é Maya, ilusão. Só existe um lugar: o aqui. Só existe um tempo: o agora. A realidade está restrita ao momento presente e sua primeira descoberta foi a impermanência: Tudo muda, de estados físicos a pensamentos. O que parece existir apenas flui e pessoas e sentimentos são transitórios. Nada pode ser considerado fixo, nem a verdade. O que se deve buscar é um nível de compreensão adequado para o que somos agora, porque amanhã não seremos o que somos hoje.
Não devemos nos apegar ao transitório, somente permanece em nós o Atman – a alma imortal. Mas acumulamos karma a vida inteira porque carregamos todo o passado conosco. Assim, o primeiro ensinamento de Buda é evitar o apego. Carregar erros e acertos passados impede que a atenção se fixe no presente, a única realidade, o único momento em que podemos zerar o karma. Quem carrega o passado não consegue produzir bons frutos.
Os budistas zen têm maneiras interessantes de passar suas lições. Usam “koans”. O koan é uma história curta que traz em si uma sabedoria nem sempre evidente e meditar sobre os koans é aprendizado. O zen é a vertente japonesa do budismo e os japoneses são minimalistas. O hai-kai e o koan são minimalistas e alguns são incompreensíveis. Mas um dos mais evidentes é o koan da Rua Lamacenta:
“Dois monges peregrinos passavam por uma cidade e encontraram uma jovem que hesitava em atravessar uma rua lamacenta com medo de sujar as roupas. Um dos monges pegou a mocinha no colo e carregou-a até o outro lado da rua. Continuaram a caminhar calados até que a noite chegou e se abrigaram numa hospedaria. Quando se sentaram para jantar um dos monges não agüentou e censurou o companheiro: – Não se espera que um monge budista carregue lindas mocinhas no colo.
Jantaram em silêncio, porque as histórias budistas são recheadas de silêncio, e quando terminaram o outro respondeu: – Eu só carreguei a mocinha até o outro lado da rua lamacenta.”
Embora treinados na mesma doutrina, um dos monges largou a mocinha do outro lado da rua, o outro a carregou por um dia inteiro.
O bem ou o mal, depositados do outro lado da rua, perdem grande parte do valor que atribuímos a eles. Quando a depositamos no outro lado da rua lamacenta, a mocinha deixa de existir. E não é sábio fazer a caminhada carregando a mocinha.
A Rua Lamancenta
Jun 20th, 2003 by Maria Helena