Um diretor de teatro me dizia que sabia quando sua peça era uma droga: nem os amigos iam ao camarim. Nelson Rodrigues também filosofava, diante de uma defunta impopular: “nem um goivinho ornava a cova dela”. O “nem” faz a diferença.
Quem escreve qualquer coisa, nestes sítios do Senhor, abre os “comentários” – como camarins – esperando tapinhas nas costas que justifiquem a hora, às vezes de 70 ou mais minutos, em que espreme os neurônios à cata de algum assunto que possa interessar aos internautas. Seres especiais, talvez como astronautas ou argonautas, sabemos que o que os move é a viagem, não o deter-se, mas ainda assim almejamos escalas em nossa crônica que, por definição, é gênero literário menor, abordando assuntos do cotidiano ou biografia escandalosa de determinada pessoa. Quando honestamente relatamos o nosso cotidiano e nem um tapinha, nem um goivinho, só onomatopéias – clap, clap – ou um registro seco – “passei por aqui” -, percebemos que não agradamos e nada mais resta a fazer, a não ser o mea culpa. Portanto…
MINHAS CULPAS (negligências, imperícias ou imprudências confessadas, antes que apareçam nas futuras crônicas e gerem rejeição):
– Sou piegas, choro nos momentos mais inconvenientes. Como terapeuta, isto é pecado imperdoável. Conta a mulher de um psicanalista famoso que o filho não pode chorar e o cachorro não pode latir quando o telefone toca porque o cliente não deve saber que seu terapeuta tem criança ou cachorro. Muito menos, lágrimas. Meus pacientes conhecem minha família, os cachorros que tive e o que não tenho, acabei criando uma terapia que me exime da neutralidade, Dr. Freud que me perdoe, mas tive que inventar outras regras porque, pelas dele, não poderia funcionar. A lágrima cai, o rímel borra, saio catando lenços de papel, assoamos juntos os narizes e ainda vou escrever um ensaio sobre o poder curador de narizes assoados em uníssono. O problema mesmo é o rímel.
– Não vivo sem rímel, brinco ou batom: pari três filhos de rímel, brinco e batom, esta dependência é antiga, sou rímeladiccta, e minhas filhas, que são jovens elegantes, já me explicaram várias vezes que ninguém usa brinco de jogging mas eu uso brinco de pijama. Em compensação não uso sapatos.
– Explico, é que dos dez dedos do pé já quebrei oito várias vezes, isso vem de pequena, minha mãe sempre dizia: não olhe para ontem, olhe para baixo. Como olho para trás, ou para frente, ou para cima, e nunca olho para os pés, vivo caindo, dando topadas, os dedos se quebram, nem vou mais a médico, imobilizo em casa com gaze gessada que uso para fazer máscaras, meus filhos também se queixam que provoco acidentes, caio e eles acabam tropeçando em mim, embora os três sejam seres normais, que usam sapatos, nunca quebraram os dedos dos pés e minhas meninas nem gostem de brincos. Mas dos dedões para cima nunca quebrei nada e não sou um perigo público, dirijo direito, entro em vaga de primeira e nunca bati, por isso é que dirigir me relaxa, não tenho que olhar para as rodas.
– Perco sapatos, claro, são garrotes vis e torturam devagar. Quase sempre debaixo de mesas de restaurante. Depois da conta paga, começo a me espichar na cadeira e explorar com os pés o território em volta – às vezes acho, às vezes não, sapatos têm movimentos autônomos, não me perguntem como mas é um fato – quando não tenho intimidade para me agachar, saio descalça. Para evitar micos públicos, só uso vestidos longos.
– Não tenho estilo. O que, a esta altura da vida, é grave deficiência, mulher deve ter estilo. Não sou casual (queijual) nem soignée (soanhê). Acho mesmo que sou esculhambada. Ultimamente andei relendo Sartre e estou em fase Juliette Greco, Café de Flore, Deux Magots, sabem como é? e só me visto de preto. Quando releio os gregos, uso túnicas. Nunca li Scott Fitzgerald até o fim, nem o Great Gatsby, soube do fim no cinema, porque jamais usaria roupa de melindrosa nem boquinha-coração, acho um horror. Estudo a Revolução Chinesa e visto ternos de brim. Leio sobre a Guerra Civil Espanhola e por algum tempo sou uma Pasionaria de xale. Os filhos relatam vergonhas irremovíveis na porta do colégio por conta dos figurinos maternos, acho um saco comprar roupa, prefiro enrolar uma colcha na cintura, e a verdade é que sou um desastre em eventos sociais: confundo Piaget com Audemars Piguet e nunca captei a diferença entre um Rolex e um Cartier. Tudo isso, descalça e fumando sem parar. Glória Khalil não me aprova.
– Não sinto cheiros. Vivi muitos anos com uma pessoa que tinha faro de perdigueiro:
– Cortou o cabelo?
– Só um pouco, dá pra notar?
– É que a casa está com cheiro de cabelo cortado…..
Vou morrer sem saber o que é cheiro de cabelo cortado ou de água fervendo. Sinto alguns cheiros normais, bosta de vaca, arroz refogando, mas jamais vou poder afirmar que alguém está usando Dior ou Armani e metáforas olfativas me confundem – uma vez um candidato a escritor disse com voz dramática que eu era uma mulher agreste com cheiro de terra molhada; como suávamos há duas horas debaixo do sol da Ferradurinha, não cheguei a entender se era crítica ou elogio mas ele também não chegou a escritor.
– Tenho péssimo ouvido, quero dizer, ouço bem mas não ouço direito, o que significa ser uma desafinada crônica. Entrei para o coral do colégio aos 11 anos, coral importante, que na parada de 7 de Setembro cantava no palanque do presidente, evento tão concorrido quanto desfile de escola de samba. No primeiro dia a maestrina me apontou com a batuta:
– Você aí, a baixinha da segunda fila, fora!
Saí chorando (sou piegas) e nunca na vida consegui cantar o Uirapuru, também nunca fui a uma parada de 7 de Setembro, embora minha música preferida, até hoje, seja o Hino Nacional.
Como sou desafinada – e isto em mim provoca imensa dor – fui estudar declamação e falo cheia de ésses e érres. Um dia até me convidaram para ser locutora, a voz tornou-se grave e pausada, o que não compensou o trauma do Uirapuru, meu sonho impossível é ser a Kiri Te Kanawa, não costumo confessar porque é impossível mesmo: os íntimos afirmam que, cantado por mim, Summertime lembra Atirei o Pau no Gato.
– Sou estróina. Estróina atípica porque detesto comprar roupas, bolsas, jóias e estes produtos que entulham os shoppings, gasto descomedidamente em outras plagas. Durante anos fui ameaçada de interdição, hoje estou bem melhor, mas o maior defeito para mim é a avareza: não consigo conviver com quem tem jacaré no bolso e ainda vou dissecar aqui o tipo avarento.
– Não entendo programação visual. Entendo letreiros, o que está escrito em bom português. Um amigo já me tirou de dentro do banheiro masculino de um restaurante japonês: vi um quimono e entrei, deveria ter entrado na porta da sombrinha. – É quimono de judoca, não reparou? – Não reparei e não me entra na cabeça por que espalham pelo mundo estes signos, que uma mente normal não decifra, e não escrevem simplesmente “homens” ou “mulheres”. Mas, como também sou masoquista, trabalho com signos.
– Não me entendo com máquinas. Não sei programar o vídeo nem gravar recados na secretária, a última máquina que consegui entender foi o liquidificador. Tenho certo medo de computadores, que só uso para escrever e a quem absolutamente não exploro, mas desconfio de computadores sempre que lembro da vozinha melíflua do Hal 9000: “Good morning, Dave”. A voz do meu também não soa sincera e quando estou sozinha em casa, prefiro pegar um bom livro e bater uma vitamina de mamão.
Bem, esta chorumela toda é para vocês relevarem quando os textos aparecerem piegas, prolixos, claudicantes, não tem jeito, o que a gente escreve acaba tendo a nossa cara e eu sou mesmo chorona e atolada. Disfarço mas não consigo disfarçar o tempo todo. Prometo tentar o figurino álgido e elegante, nas próximas semanas. Clean. Pós-alguma coisa. Estiloso.
É que o melhor lugar do teatro é coxia ou camarim – e eu me amarro mesmo num tapinha ou num goivinho.
Mea Culpa
Jul 21st, 2003 by Maria Helena
Um amigo me disse que o meu blog esra a primeira coisa que aparecia no google ao pesquisar a palavra brincos e batom… Ei que fui testar… de fato… Mais o que interessa? Quero ver é ¯ resto… E do feliz tropeç¯ vim parar aqui!
Ó´imo texto, e tapinha nas costas e tudo mais!