Ela viveu há 3.500 anos e ainda hoje é um mito.
Nefertiti, uma das mais poderosas rainhas do Egito, é tema de um documentário que o Discovery Channel exibe no próximo domingo, às 21h. O programa, com 2 horas de duração, mostra o trabalho realizado pela equipe da cientista Joann Fletcher, da Universidade de York, na Grã-Bretanha, que utilizou técnicas de Raio-X digital para reconstituir a face da múmia que a cientista acredita ser da mulher do faraó Akhnaton. Pelas fotos divulgadas, podemos ver que Nefertiti é a cara da Naomi Campbell.
Só tivemos três grandes religiões monoteístas, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo – todas as outras foram politeístas. Mas há 3.500 anos, bem antes portanto do Cristianismo e do Islamismo, o faraó Amenófis IV promoveu no Egito uma reforma religiosa, baniu os outros deuses, instituiu o culto ao Deus único – Aton, o Sol -, mudou seu nome para Akhnaton e se designou Filho do Sol. Algo que só teria um paralelo, mil e tantos anos depois, quando Jesus se revelou como a manifestação do Filho Único do Deus Único.
Quando falamos de Akhnaton não estamos falando de um simples faraó mas sim de Deus encarnado. E Nefertiti foi sua mulher.
Vou ver o documentário, sem dúvida, como também não perco um filme sobre Cristo, mesmo sabendo que o mocinho morre no final. Mas nunca me conformei com as faces de Cristo. De todos que vi, e vi quase todos, o que mais gosto é a Última Tentação de Cristo, um filme de Scorsese baseado num livro de Nikos Kazantzakis. Kazantzakis é um autor grego e seus livros às vezes viram filme, todos nós vimos Zorba. Sua visão de Cristo não é religiosa, é mitológica, e o filme mostra como a biografia pessoal se torna desimportante diante do surgimento do mito – na visão grega do Herói o que conta não é o que foi vivido mas o que foi simbolizado.
O filme é de uma beleza rara, a trilha é de Peter Gabriel, mas, definitivamente, Cristo não tem a cara de Willem Dafoe, nem de nenhum dos outros Cristos do cinema ou do teatro. O humano jamais poderá representar o simbólico.
Quando a cientista da Universidade de York deu um rosto a Nefertiti, datou Nefertiti. Daqui a cinqüenta ou sessenta anos, Naomi Campbell será tão antiga quanto a boquinha de coração de Marlene Dietrich e vamos ter dificuldade em acreditar na sua beleza, como temos dificuldade hoje em acreditar que o charme de Lola-Lola pode arruinar a vida do professor Unratt. Continuamos a chamar Von Sternberger de talentoso mas assistimos a Anjo Azul “de fora”: o que é expresso formalmente impede o “mergulho” que só a imaginação permite.
Por isso, qualquer forma de arte visual perde para a Literatura e ainda vou escrever uma crônica sobre os livros inesquecíveis que viraram filmes esquecíveis – a exceção que me ocorre é O Nome da Rosa, tenho um fraco por Jean-Jacques Annaud, mas também pode ser porque tanto o livro como o filme são recentes e, com o passar dos anos, a cara de Sean Connery também transforme William de Baskerville num monge datado, de boquinha de coração.
Algumas culturas proíbem, sabiamente, a representação do humano ou do divino – entendem que a arte plástica deve ser paisagística e ornamental. Os homens, teimosamente, insistem em patentear sua visão dos deuses e dos mitos. Aí, deuses e heróis passam a ter o tamanho dos homens.
Há muitos anos atrás, estava pela primeira vez na Galleria dell’Accademia, em Florença, diante do Davi. Davi não tem as dimensões normais de Moisés ou da Pietà – é um impressionante gigante de mármore, nu, com a funda nos ombros, solitário no centro de um salão iluminado por clarabóias. Estávamos todos num silêncio reverencial, uma pequena multidão caminhando lentamente em volta dele, apreciando de todos os ângulos, e não sei o que as pessoas pensavam. Eu devia estar pensando nos Salmos, em Betsabah, na luta com Golias, nada de original, quando alguém do meu lado, conhecido por sua ironia venenosa, observa:
– Michelangelo cometeu um engano, Davi não está circuncidado. – Eu não tinha reparado, sou distraída, mas era verdade, e Davi foi rei de Israel, tinha que ser circuncidado!
Burburinho, desordem, vozes confusas, todo mundo se aglomerando na frente da estátua e – horror! – se atrevendo a criticar Michelangelo, que a esculpiu num bloco único e, depois de pronta, levou vários meses apenas polindo para que o mármore virasse carne. Foi quando uma mulherzinha, feia por sinal, deu seu veredicto sobre o homem em que o mito, repentinamente, se tornara:
– E olha só: Davi não era lá essas coisas, não!
No minuto seguinte, estávamos todos fora da Accademia. Lá dentro, na sua solidão de 500 anos, uma obra perfeita que – por humanizar o divino – passou a comportar falhas e faltas.
Nefertiti, volte a ser apenas múmia!
Nefertiti
Sep 5th, 2003 by Maria Helena