Parece que a vida anda em baixa, de novo, no meio de escritores jovens. Um saco, a vida.
Embora qualquer criança saiba o que é, não temos boas definições de vida, talvez por ser tão óbvia – é difícil definir o óbvio.
Cristo dizia que a trazia consigo, junto com o Caminho e a Verdade. Buda agourava que só conseguimos nos livrar dela depois de rompida a famosa Roda de renascimentos e mortes. Darwin arriscava que era mutação. Um cara a quem admiro pelas boas definições disse que é “a modalidade de existência dos corpos albuminóides”. Não pensem que a pérola é de algum estudante de Biologia, é de Engels, no Anti-Dühring, filosofia marxista sobre o mundo orgânico. Vai ver que tentava evitar confusões com “dom divino”, essas coisas, sempre tento aliviar pro lado de Engels mas a definição é lamentável.
Para Bandeira, por dedução, era a “desejada das gentes”; o que não espanta porque Bandeira era tuberculoso e já nasceu de óculos.
Embora não definida, a vida é – indubitavelmente – protegida no Estado moderno, a começar pelas Constituições. Supõe-se que a aludida seja a humana, mas também são protegidas a vida das baleias, do mico-leão e do pau-brasil. Fora o voto dos escritores jovens, a vida é eleita por unanimidade.
Não foi sempre assim. Esta proteção, que nos parece tão natural, é relativamente recente na História, outros bens foram tutelados antes da vida. A alma. A propriedade, sempre. O próprio corpo sem vida foi protegido antes de que se pensasse em apoiar o direito à vida. Quem não viu representada a tragédia da filha do herói, que desafiou o poder para dar sepultura ao irmão?
Mas, hoje, a vida é mais do que um direito: é um dever. O que talvez seja um perigo. Quando transformamos o relativo em absoluto, eliminamos as oposições externas e as contradições internas começam a ser geradas. A desvalorização da vida é uma reação à obrigatoriedade da vida.
A filosofia existencial do ser e do nada foi formulada e ficcionalizada na Europa antes da guerra: – Terça-feira. Nada. Existi. – Silenciou nos anos 40 porque os jovens filósofos deviam estar sofrendo de medo, indignação, revolta, tudo menos tédio e nojo, e muito ocupados em salvar a própria pele. A possibilidade da morte dá significado à vida.
Voltou nos fifties, na América, quando James Dean fazia “pegas” de blusão de couro, topete e costeleta, junto com outros outsiders, arriscando a vida por nada; era o retorno do nada. Rebel without a cause foi toda uma geração – e a causa que faltava não era só um princípio inaugural mas uma ideologia. As décadas se sucederam e, neste meio-tempo, os hippies cantaram make love, not war: rolava a guerra do Vietnam, Eros e Tânatos voltavam a atuar juntos, amor e guerra se opunham, a velha dialética era restabelecida e parece que foram tempos felizes. Ou, ao menos, coerentes: queimavam as convocações de alistamento, deixavam o cabelo crescer e a luz do sol entrar, os tempos eram de Aquarius e ninguém queria morrer antes de ver a new age chegar. A paz garantiu o surgimento dos punks e a popularização da droga pesada, o mundo começou a ficar escuro. O Universo conspirou, veio a Aids. No final dos 80, Cazuza gemia: Ideologia, eu quero uma pra viver.
O cotidiano é alienante. Viver para trabalhar e consumir, trabalhar e consumir para viver, viver para trabalhar e consumir, foi o círculo absurdo criado pela sociedade do Ocidente e os jovens exumaram o falecido tédio e seus corolários: o mais grave deles, a desvalorização da vida. Com certa razão, nenhuma griffe compensa a “pena de viver” – é preciso mais, muito mais.
É claro que estamos falando do jovem ocidental, de classe média e com algum acesso à cultura. Talvez no Oriente Médio seja diferente. Lá, hoje, eles têm causas que valem uma vida. E porque ela é ameaçada todos os dias e porque eles a sacrificam por uma causa, talvez acreditem que a vida é mesmo o bem supremo. Será enquanto não for.
Portanto, jovens entediados do decadente mundo ocidental, providenciai urgentemente uma ideologia – pela qual matareis e morrereis – para não morrer de vida. Só está pronto para viver quem está pronto para morrer e vida pode ser, mesmo, doença mortal.
Vida, vida, se eu me chamasse Margarida seria uma rima…
Jul 4th, 2003 by Maria Helena