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Apis Regina

Os problemas sempre começam com o meu tédio. Não é um tédio existencial, longe disso, a existência não me angustia, nem a minha nem a alheia, não acordo perguntando para o espelho por que existe o ser e não o nada e não sofro de náusea. É mais o cansaço da reprise, a eterna sensação de dejá vu – consigo tê-la vendo filmes e peças que nunca vi e nos papos sociais com a maioria das pessoas, prefiro um bom livro a quase todos os convites. Agendo meus dias, principalmente os dias livres, com um critério quase automático: – tá bom, garantem que vai ser divertidíssimo, mas o que pode acontecer de surpreendente? – Quase sempre a resposta é: nada. E, quase sempre, dou um jeito de pular fora.
Com as pessoas amoráveis, não – qualquer restaurante é bom, qualquer caminhada na praia é um programa, não fazer nada juntos também é ótimo -, não reivindico surpresas destas pessoas, até prefiro que continuem como sempre foram.
A opção preferencial pelo imprevisto torna qualquer locomoção um arrependimento e poucas tentativas fora de casa conseguiram me encantar e vencer o meu tédio.
Beber ayahuasca na selva de Tupinambarana, procurar uma frase escondida há 400 anos nas muralhas de Ávila, esperar um dia inteiro em Congonhas do Campo para ver Zé Arigó enfiar uma faca no olho de alguém, passar meses vasculhando de cabo a rabo uma rua imunda da Lapa, atrás de um número inexistente que apareceu num sonho, e descobrir o prédio num alfarrábio da Biblioteca Nacional, foram experiências inesquecíveis. Mas quase todas as outras foram esquecíveis e execráveis.
Então, não é de admirar que não vá a médicos. Estão sempre no mesmo endereço, com a mesma salinha de espera, a mesma música, as mesmas revistas e a mesma enfermeira com sua lixa de unhas. Também porque médicos são detetives natos que nunca acreditam no seu depoimento honesto:
– Não sinto nada.
– Nunca se sabe, vamos investigar.
– Mas eu sei quando sinto ou não sinto.
– Melhor checar.
Como sou otimista e acredito que quem procura, acha, prefiro não freqüentá-los. Mas, há um ano e pouco, fui a um e ouvi estranho diagnóstico:
– LER. Dá em quem escreve (encantado com a própria piadinha). Digita só com estes dois dedos?
– Só.
– É como joelho de jogador de futebol, não tem jeito, usa demais, estraga mais cedo que o resto.
– E o que se pode fazer?
– Pendurar as chuteiras (outra gracinha). Dói?
– Não.
– Mas vai doer, a degeneração é rápida. Precisa de calor, fisioterapia com forno.
Saí do consultório do abutre temendo que os dedos já não segurassem mais as folhas de exames que não fiz e o endereço do fisioterapeuta a que não fui: seriam 3 vezes por semana e o meu tédio não consegue imaginar o mesmo programa – 3 vezes por semana – por mais de uma semana.
Foi quando uma amiga fez uma matéria para O Globo sobre um apicultor que curava tudo ou quase tudo com picadas de abelhas. Quis detalhes e ela é pródiga em detalhes. Ao final, eu já estava convencidíssima: – Será que cura Lesão de Esforço Repetitivo?
– Já curou esclerose múltipla, artrite e AVC. LER é brincadeira.
Qualquer trabalho que mexa com o simbólico ganha meu crédito de saída e a abelha é dos símbolos mais impressionantes. Em hebraico, abelha é Débora e a raiz Dbr se refere ao verbo, à palavra. Abelhas teriam pousado sobre os lábios de Platão, recém-nascido, e lhe conferiram eloqüência e inteligência. Para os egípcios seriam as lágrimas de Rá, o deus-Sol, derramadas sobre a terra. Em Elêusis, as sacerdotisas eram chamadas de abelhas, na Idade Média simbolizavam o Espírito Santo. Napoleão inverteu a flor-de-lis dos Bourbon e fez da abelha o seu emblema, ela também é poder.
A terapia se completa com o uso de pólen e geléia-real. A geléia real é o que torna a Apis Regina diferente da Apis Mellifica. A rainha é uma abelha igual às outras mas que só se alimenta de geléia real, por isso vive 40 vezes mais do que as operárias – que se alimentam de mel – e desenvolve fertilidade assustadora, daí ser a mãe da colméia inteira.
E assim na semana passada, sem nenhum tédio, lá fui eu ao encontro do apiterapeuta que não tem salinha de espera, esperamos num jardim com água e cafezinho, fuma-se à vontade e os outros abelhados garantiram que com 7 ou 8 sessões eu estaria definitivamente boa.
Estendi as mãos, um pouco tensa, ele pegou com uma pinça a abelha numa caixa de vidro, deu uma apertadinha na cintura dela e ela picou. Doeu pra burro. Queimou. Olha o calor que o fisioterapeuta queria, quando pensava em colocar meus dedos no forno. Um dedo, outro. Como estávamos os dois com a mão na massa, ele não parou. Cinco em cada mão. Dez ao todo.
– Melhor não digitar, hoje nem amanhã.
Nem podia, naquela noite as mãos dobraram de tamanho e quem digita com luvas de box? Deu febre e tremedeira. Liguei para uma amiga médica, nada simbólica, e me preparei para o sermão:
– Espasmo de glote, tonteira, vista turva?
– Não.
– Perdeu os movimentos finos?
– Os grossos também.
– Se notar dificuldade para engolir, chama uma ambulância. Anafilaxia mata.
– Não seja dramática.
– Toma um anti-histamínico.
– Já estou.
– Toma juízo, também.
E desligou na minha cara.
Bem… passei o fim-de-semana observando, orgulhosa, a reação napoleônica do meu corpo frente ao veneno invasor. Fiquei uns cinco dias sem escrever nada, o que não me fez falta, o tempo sobrou. Li dois livros que havia comprado e um romance emprestado do Furio Monicelli.
Mas continuo uma férrea defensora de terapias simbólicas – tudo é imprevisível e nada é tedioso. Junto com geléia real, pólen e própolis, não serei mais uma operária, serei uma Regina.
Se também não responder aos comentários à esta coluna, compreendam e não se ofendam, consigo lê-los porque os olhos estão preservados, o apiterapeuta não tem planos para eles: é que quinta-feira é dia de abelhas e lá estarei, novamente, contra todos os conselhos. Elêusis, Espírito Santo, Platão, o Verbo, não dá pra resistir.
E, como vocês sabem, pico vicia.

One Response to “Apis Regina”

  1. ruyrolim says:

    A geleia real cura depressão?

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