A obesidade aumentou, nas últimas décadas, e nos países mais ricos já é caso de saúde pública. O pior é que o obeso, apesar de comer muito, é mal alimentado. Atribui-se este problema à fast-food.
As redes de fast-food obedecem a alguns princípios: pequena variedade, paladar padronizado e facilmente reconhecível, programação visual para cada produto.
Em qualquer lugar se come o mesmo Big Mac e as pessoas os comem todos os dias. Monótono, não? Mas a monotonia contribui para a rapidez – engole-se mais rápido o que já se conhece e não oferece surpresas. Quem não gosta de um Big Mac?
A diferença entre a fast-food e a comida elaborada é que esta é uma aventura, tanto para quem a faz como para quem a come. Todo bom cozinheiro sabe que não se repete a mesma receita, há um fazer pessoal de cada vez e experimentação constante: gastronomia é arte. E, porque é arte, não existe gastronomia em rede.
Depois da Segunda Guerra, criaram-se as primeiras escolas de jornalismo no mundo, que passaram a atrair pessoas que gostavam de escrever. Nestas escolas eram ensinadas técnicas de redação para jornal. Tal qual nas redes de fast-food, há um paladar médio que deve ser atendido, pouca escolha e um molho previsível.
Os editores recomendavam um livro a cada adjetivo censurado – “o que o senhor acha da vedete assassinada, coloque no seu livro, seu Ananias” – e Graciliano Ramos, quando era revisor do Correio da Manhã, depois de passar o lápis vermelho num texto, escreveu na margem para o repórter iniciante: – Outrossim é a puta que pariu.
O texto jornalístico passou a ser seco, curto, substantivo. Qualquer palavra que não fosse de uso corrente ou qualquer estilo que pudesse identificar o autor eram podados em nome da objetividade e da redação uniformizada. Definiram-se dois textos distintos, o jornalístico e o literário.
Mas nem sempre foi assim. Dostoievski, Victor Hugo e Machado de Assis escreveram romances em folhetins diários ou semanais – acompanhados por milhares de leitores – e só depois os editaram como livros. Parece que era possível à massa consumir a boa letra.
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão mandaram cartas anônimas durante meses ao Diário de Notícias de Lisboa dando conta de crimes misteriosos ocorridos na Estrada de Sintra. Escreviam alternadamente e cada um deles procurava deixar o parceiro encalacrado para continuar a trama. Quando ao final os dois escritores se revelaram como os autores das cartas, O Mistério da Estrada de Sintra já tinha o sucesso editorial garantido.
A preocupação, para com tudo que é dirigido às massas, é facilitar para aumentar o consumo. Mesmo os textos assinados dos jornais guardam um tom sempre leve, temas atuais e digeríveis, vocabulário pobre para ser entendido. Mas nem sempre o entendimento conduz à compreensão porque sabemos que são coisas diferentes.
A literatura do pós-guerra veio a tornar-se uma literatura jornalística e a beleza do texto deu lugar à clareza e à concisão. O texto elegante – assim como a mulher – passou a ser o texto magro, enxuto, sem qualquer adiposidade.
No livro, o autor falava e cabia ao leitor o esforço de entende-lo.
Na literatura atual, o autor fala “para” o leitor: o trabalho para ser entendido passa a ser dele. Ele fala então para um leitor que não existe, é uma média, uma ficção estatística. Mas este leitor inexistente passa a ser co-autor porque impede a liberdade de dizer em nome do direito de entender. Ele não cresce com o autor que lê, o autor é que fica do seu tamanho. Não pode dar muito certo, olhem as novelas.
E agora, chegamos à Grande Rede e à curiosa escritura on-line que todos praticamos. Em que não se fala mais como nos jornais ou na literatura dos últimos 50 anos: fala-se “com” o leitor.
A literatura da Rede é onomatopéica, sim. Cheia de putz, humpf, irgh, e todo texto é um monólogo coloquial. A onomatopéia é um recurso usado para a comunicação com crianças pequenas. O estilo que se está a criar na Rede é o discurso dirigido a alguém sempre infantil. Repetem-se palavras exaustivamente (vamos, vamos tomar banho!), criam-se possíveis objeções do leitor para reforçar o que se quer dizer e se pontua a hora do riso, rsssss, ou da gargalhada, kkkkkkk. Como nas comédias tolas para TV em que – para a platéia rir – o filme ri.
Já imaginaram Cervantes indicando o momento em que devemos rir de Sancho?
O autor sempre riu sozinho. Alguns leitores o acompanhavam, outros não. Também chorava só. Agora – snifff – compartilhamos todas as suas emoções. É curioso? É. É empobrecedor? Também.
Aonde vai dar? Ninguém sabe. Nunca se sabe, no início. O fenômeno do texto jornalístico invadiu e ocupou a literatura, ela não foi mais a mesma e nunca mais ousou pronunciar “outrossim” e “alcatifas”. Pode ser que o estilo da Rede determine a literatura do século XXI. Será uma pena.
São poucos milhares de palavras, as que temos à disposição para descrever o que toda literatura tenta capturar – o homem e seus mundos. Temos menos palavras, em qualquer língua, do que livros editados anualmente. É pouco material, para a ambição de um escritor. Seria insano reduzi-lo ainda mais e descartar a busca do ingrediente raro e do tempero criativo.
Lê-se pouco, na Rede? Não. Lê-se mal.
Consumimos em grande quantidade e estamos todos obesos. Mas matamos nossa fome com 2 hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles num pão com gergelim.
Obesidade Mórbida
Oct 17th, 2003 by Maria Helena