Feed on
Posts
Comments

Todo mundo usa

O GNT Fashion mostrava umas sandálias havaianas de Chanel e elas custavam mil não lembro que moeda, dólares, euros ou foram convertidos em reais, não importa. Custavam mil-qualquer-coisa. Aquelas, todas de borracha, brancas ou coloridinhas, que as tiras não soltam, não têm cheiro, etc.
Como o Havaí é aqui, havaianas são brasileiras, é claro, e são um modelo acabado e imexível de conforto e bom gosto. Agora, com a griffe Chanel, talvez sejam em breve conhecidas como as “francesas” e o mundo estará autorizado a admitir o que elas sempre foram: belas.
A nossa estética é uma imposição das griffes e ninguém sabe mais o que é bonito ou feio. Os estilos de época sempre foram identificáveis na arquitetura, na literatura, na indumentária e o estilo é a evocação da História – evoluções ou revoluções revolucionavam ou faziam evoluir a gastronomia, o vestuário, a moradia -, enfim, o homem cria de acordo com os meios que o momento histórico coloca à sua disposição. E a criação humana, ainda que não intencionalmente, tende para a beleza. Ou tendia, antes das griffes.
As havaianas são belas porque mantiveram a simplicidade da sandália original: uma sola e algumas correias, nada mais. O mínimo. Desde que o homem deixou de usar peles amarradas aos pés, a sandália apareceu como o calçado de quase todas as civilizações – protegia o pé e o deixava nu. Funcionalidade e liberdade.
As sandálias gregas são belas – e as havaianas são sandálias gregas – como o peplo é belo: um pedaço de pano que se enrola no corpo e o protege; mas debaixo daqueles panos há um corpo livre que se revela. Sua beleza está no panejamento e no corpo que o porta.
Todos os Caravaggios, Rembrandts e Velásquez foram atraídos pelo panejamento e assim vestiram seu Deus, suas musas e seus santos – panos soltos, cores, luz, sombra e corpos insinuados: a beleza do vestuário não precisa de mais nada. Não sei quem foi o asno que inventou o espartilho e a anágua.
A partir da Idade Média, por decência, os pés foram cobertos e o sapato substituiu a sandália. Começava o terror.
Os gregos foram mestres na suntuosidade do simples e a beleza é simples, o excesso é sempre mau gosto. O Partenon é belo porque não tem um detalhe que se sobreponha ao todo, Fídias capturou a forma perfeita.
A forma é Afrodite e ela não se revela a qualquer um, exige sacrifícios para ser contemplada. Contemplar um deus é “penetrar com ele no seu templo”: no território sagrado não se entra sozinho, só acompanhado, e quem não contempla o deus não fará nada que mereça ser contemplado pelos homens. Fazer arte era dar-se em holocausto à Afrodite, consumar o sacro ofício e trazer a beleza do Olimpo para a Terra. As havaianas são a Bic dos calçados – atingiram a perfeição olímpica.
Sou do tempo em que as canetas esferográficas tinham cargas substituíveis, sujavam as mãos e as mochilas e vazavam uma tinta que não saía das roupas nem com água sanitária. Por conta disso, ainda se davam canetas-tinteiro aos filhos e ganhei a minha Parker 51 quando aprendi a ler. Um saco.
A caneta virava objeto pessoal, a pena ia gastando do jeito de quem a usava e a escrita era dura por muito tempo. Depois amaciava. Mas se alguém pegasse a sua caneta e escrevesse com ela, ela voltava a arranhar o papel. E tinha a escravidão do tinteiro.
Aí vieram as Bic sem recarga, blindadas, limpinhas. Usou, gastou, dispensou. Baratas. Tão práticas quanto fraldas descartáveis. Ficamos felizes para sempre? Não. Exumamos a caneta-tinteiro.
Por quê? Nunca entendi. Aí entra a griffe – elas são griffadas.
Uma vez, um cidadão íntimo assinou uma lista de adesões ou coisa assim num clube de grã-finos. Gesto automático, enfiou a caneta no bolso do paletó. De madrugada, o telefone toca: o aflito proprietário da Montblanc queria saber se “por acaso” não tinha sido levada “por engano”. Bolso conferido, tinha sim. De manhã bem cedo, veio buscar. Aquela porcaria não era mais uma caneta, era uma jóia com um tanto de ouro, platina, uma tampa especial, ele explicou se desculpando, e mais a griffe, havia um bom dinheiro embutido no raio da caneta. E afinal, uma caneta é apenas uma caneta, uma caneta, uma caneta… Ou não?
Perguntei: – Por que não usa Bic? – Ele disse: – Oh!
Cervantes escrevia com pena de ganso. De vários gansos, suponho, e não de um canard especial. O dono da Montblanc não escrevia, apenas assinava cheques.
E os relógios?
Relógios sempre foram peças caras e de esmerada ourivesaria. Eram engrenagens milimetricamente torneadas, de material nobre, ouro quase sempre, para aprisionar a passagem do tempo numa caixinha, a ampulheta perfeita que prescindia do escravo para cuidar dela. Os relógios passavam de avô a neto.
Mas hoje, depois da milagrosa bateria, qualquer relógio de camelô nos dá uma precisão que o Big Ben nunca sonhou atingir. O homem se considerou livre para não pensar mais em relógios? Não. Eles continuam a ser, como na origem, sinais visíveis da diferença entre os homens: o relógio não deve ter somente precisão, seu requisito essencial – deve ter griffe. E griffe não é nem beleza, é assinatura.
Depois do endeusamento da griffe, o que custa caro é a inutilidade agregada ao objeto, não a funcionalidade. Em quase todos os produtos de vestuário e acessórios, já se conseguiu a perfeição barata – assim, ela passou a desqualificar aqueles que os usam.
Bics, relógios de camelô e havaianas são produtos perfeitos, sem possibilidade de aperfeiçoamento a curto prazo. Um amigo inteligente e sagaz até me fez notar, um dia, que Bics são sextavadas para não rolar na mesa. Eu nem tinha percebido. E as “tinteiro” são cilíndricas, caem no chão, sacrificam a coluna, mancham o tapete. O homem deveria se orgulhar de cada Bic que portasse. Mas não, qualquer um trocaria sua Bic pela Montblanc do alheio. Tendemos, coletivamente, para a cegueira e a loucura. É a ditadura das griffes.
Lembro de quando elas, sorrateiramente, começaram a sair da banda avessa e se popularizaram na direita. Resisti o quanto pude, me recusava a usar roupas com a etiqueta aparente, outdoor vivo das marcas ditadoras. Vivi e vivo “modas” inacreditáveis: das ombreiras de jogador de baseball aos bicos finos dos sapatos atuais que conseguem torturar dez dedos ao mesmo tempo. Gosto de peplos e pés descalços. Por prazer e por estética.
Fico ainda espantada como a moda ditada para cada estação é consumida indiscriminadamente por quem a merece e por quem deveria enxotá-la. Percebo, assustada, uma cultura de griffes fazendo nas sombras a ditadura do bom (mau)-gosto. Uma uniformização, que se renova a cada estação. As mesmas camisetas, a mesma filosofia estampada no peito ou nas costas como brazão de classe (quase sempre em inglês e mau inglês). Anual. Sazonal. Alguém notou que a camiseta branca, lisa, é bela?
O que a classe média mais ou menos abastada usa hoje, as empregadas domésticas usarão amanhã. Mas todos serão igualmente contaminados e ninguém usará peplo, camiseta branca ou havaianas, quando quiser se mostrar “bem-vestido”. Que pena.
Um amigo lembrava que assistimos à uma revolução cultural. Como nem Mao sonhou nem conseguiu. A uniformização da estética, da filosofia, da palavra-de-ordem, do humor em dísticos estampados no peito.
Podófila convicta (pó, não pê), dedicando-me diariamente a pensar na liberdade dos pés como direito inalienável, quero declarar de público meu amor às havaianas antes que as Chanel dominem o mercado. E elas passem a custar mil-alguma-coisa.

Leave a Reply