Por vício e ofício, leio jornais procurando os mitos embutidos nas matérias. Como nada é novo mesmo, sob o Sol, o que quer que aconteça já aconteceu. Identificar os símbolos e mitos nos eventos relatados nos dá a possibilidade de prever o final de quase qualquer drama.
As personagens mitológicas representam funções psíquicas, as relações que engendram entre si compõem uma dramaturgia da vida interior e o que acontece no interno e no inferno das pessoas me interessa muito mais do que o relato objetivo dos seus atos.
Na semana passada, li e não consegui esquecer esta matéria:
“Armin Meiwes, 41, colocou anúncio em websites procurando “jovens sarados entre 18 e 30 anos para abate”.
Ele encontrou Bernd-Jurgen Brandes, 43, que aceitou se tornar sua vítima. Brandes viajou até a casa de Meiwes em Rotemburgo. Concordou em ser castrado, teve seu membro flambado e os dois o comeram juntos no jantar. Meiwes registrou o banquete em vídeo.
Depois do jantar, Brandes permitiu que Meiwes o assassinasse. Foi esquartejado e suas partes guardadas no freezer. Durante os meses do inverno, Meiwes comeu cerca de metade do corpo.
Foi quando Meiwes colocou um segundo anúncio e começou a entrevistar novos candidatos. A maioria respondeu ao anúncio acreditando se tratar de uma fantasia sexual mas alguns perceberam que se tratava de uma proposta séria de canibalismo e foram à polícia.
Meiwes alega, em sua defesa, que tudo foi feito com o consentimento da vítima. E tem algumas queixas, Brandes mentiu para ele: disse que tinha 38 anos quando, na verdade, tinha 43.”
O desejo de comer carne humana me levou, de saída, a pensar em comunhão. O devoramento do corpo é sempre uma “incorporação” (claro!) de poderes e atributos e algumas culturas praticaram a antropofagia de maneira ritualística: jamais comiam o inimigo covarde, o que se come passa a fazer parte de nós.
Osíris, deus egípcio identificado com o Sol, simboliza a atividade vital: a morte e a ressurreição. Esquartejado por seu irmão Set – seu lado escuro, a sombra do Sol – é ressuscitado por Ísis e representa a vitória eterna da vida sobre a morte, à qual toda a vida é destinada.
Na comunhão, nos é oferecido o “corpo de Cristo” e “hóstia” era o nome dado à vítima imolada aos deuses como oferenda. Era o corpo do sacrifício. No cristianismo, este mistério está representado na Eucaristia e mistério significa “trabalho sagrado”.
Deve dar um trabalhão reduzir um corpo humano a bifes. Guardá-los no freezer também me pareceu muito prático e pouco ritualístico.
O pênis é a potência geradora e, sob esta forma, é venerado em diversas religiões. O poder fálico fundamenta, até na Cabala, tudo que está vivo e a nona Séfira – Yesod, não por acaso a geração e o fundamento – sustenta a Árvore da Vida.
Urano, deus do Céu na teogonia grega, deitava-se sobre Gaia, a Terra, e gerava filhos sem parar. Gerava monstros, titãs, hecatônquiros, e depois os achava feios demais e os atirava ao Tártaro. Símbolo da fertilidade criadora indiscriminada, foi castrado por seu filho, Saturno. Da espuma ensangüentada do membro uraniano caído no mar, nasceu Afrodite – deusa da ordem e da forma harmoniosa. Deusa cultuada pelos artistas, que conhecem a necessidade da forma limitando a fertilidade infinita da inspiração: formar é dar limites.
A castração é ato simbólico, indispensável à realização da obra artística – o trabalho humano dando forma à inspiração divina.
Pensei primeiro em Meiwes como um artista. Mas, que diabo, os dois malucos flambaram o poder fálico – nem sei se com conhaque – e isso eu nunca vi em parte alguma!
Ler o jornal é fazer uma viagem por símbolos e mitos. Elas – as personagens das tragédias do dia-a-dia – e nós – que nos consideramos tão mais sãos e menos trágicos – na verdade somos a matéria de que os mitos são feitos.
Mitos são eternos e se repetem e se desdobram na história da humanidade, em atos de santidade e sanidade e em atos de crueldade, inexplicáveis mas miticamente inteligíveis.
As histórias míticas não me surpreendem. As não-míticas não me interessam. Mas alguém pode me explicar, por favor, o que está acontecendo de novo em Rotemburgo?
Apesar da intimidade com mitos e símbolos, não estou conseguindo estabelecer conexões que se sustentem e, para ser honesta, não estou entendendo mais nada.
Um novo mito em Rotemburgo
Dec 12th, 2003 by Maria Helena