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A mão autônoma

Costumo vagabundear pelos canais da Net e acabo parando no Discovery Health. Não lembro de ter aprendido nada que possa contribuir para a minha longevidade saudável mas descubro algumas doenças incríveis. Foi no Discovery que fiquei sabendo do Síndrome da Mão Autônoma.
É isso: uma das mãos se rebela e passa a agir independentemente da vontade do seu dono. Ele – o dono – apaga a luz quando sai do banheiro e a mão autônoma acende. Ele se cobre na hora de dormir e a mão autônoma o descobre. Ele pega uma maçã e, assim que abre a boca, a mão autônoma a atira pela janela. A outra mão – a tutelada – costuma bater na mão autônoma, instigada pelo dono.
Me convenci de que o melhor regime para o corpo é a monarquia absolutista. Uma autoridade suprema deve comandar e todo o resto viver em vassalagem, sem direito a assembléias, constituições e demais invenções burguesas que só geram bagunça: tem que ser decreto-lei e vocês também concordariam se tivessem visto A Mão Autônoma. A liberdade enlouquece o sistema.
Se o seu corpo funciona direitinho, se você pega um cigarro com a mão direita e a esquerda – fraternalmente – já vai tratando de acender o isqueiro, se a mão direita pega a faca e a esquerda espeta o bife, se a esquerda coça o nariz e a direita continua no volante, você está de parabéns e pode dizer com orgulho que vive numa perfeita monarquia. Ou numa ditadura, como preferir – você instaurou a ordem e não será vítima da mão autônoma.
Estou desconfiada de que ando dando liberdades demais, lá em casa, e já tem alguém pensando em direitos humanos, quem sabe em revolução:
Passei o feriado carioca de São Sebastião no Copa D’Or.
Copacabana é um bairro que tem mania de dourado. Era o bairro da moda nos Anos Dourados. O restaurante do Copacabana Palace, o hotel mais conhecido da cidade, é o Bife de Ouro e seu salão de festas o Golden Room. E agora, mais caro do que o Copacabana Palace – lugar no qual jamais me passaria pela cabeça comemorar o piedoso feriado -, temos o Copa D’Or, onde acabei dando com os costados, premida apenas pelo amor materno.
Explico: todo mundo sabe que é naqueles dias – entre o fim do seguro e o telefonema do corretor, lembrando que ele expirou – que o nosso carro bate ou é roubado. Seguradoras só são empresas lucrativas porque os sinistros, metodicamente, acontecem neste pequeno intervalo, quando estamos descobertos.
Pois é. Foi o que aconteceu, num pequeno e dolorido incidente, que gerou uma pequena cirurgia, com pequeno período de internação, nada grave, tudo pequeno. Mas o seguro estava vencido e a conta – oh, Midas, que não és minha entidade protetora e não transformas em ouro aquilo em que toco -, a conta daria para bancar orgias que nunca fiz no Copacabana Palace, aquelas da Ava Gardner, com direito a jogar cadeiras pela janela. Era uma fatura indecorosa, faria corar um monge de pedra. Mas não são nada monásticos os donos do Copa D’Or, este hospital que pensa que é um hotel 5 estrelas.
E foi lá, na Tesouraria, na hora da saída, que se manifestaram sintomas assustadores.
Entreguei o cheque à elegante tesoureira, que parecia fugida de uma página de Caras, ela observou que eu havia subtraído muitos reais da conta e pediu-me que fizesse outro.
Desculpei-me, envergonhada, e preenchi mais um cheque, agora com o total correto, tive o cuidado de verificar duas vezes. Ela então me pede uma identidade e, já impaciente, torna a devolvê-lo – “as assinaturas não conferem” -, assinei com nome que não uso mais há quase dez anos e não é, evidentemente, o que consta da carteira. Percebi ali o ardil da minha mão autônoma, numa evidente manobra não só para embananar a compensação bancária mas também para imputar-me prática de falsidade ideológica ou qualquer delito grave. É uma meliante, esta mão revoltada com o sistema.
O terceiro cheque foi feito com o vagar de prova do Mobral. A manequim/tesoureira ditou-me tudo, inclusive meu nome, e eu e ela verificávamos cada campo preenchido, antes de passar adiante.
– Agora, tudo certinho – sorríamos uma para a outra.
Estendi-lhe, desprendidamente, aquele cheque pesado como barra de ouro e na mesma hora a minha mão o puxou de volta, num movimento insano e sem comando – juro que meu cérebro não deu esta ordem – deixando perplexa a manequim, que não sabia o que fazer com a metade rasgada que ficou em seu poder.
Aí, já com vontade de chorar por me descobrir portadora de doença grave, talvez incurável, fiz como o sintomático do Discovery – dei uns bons tabefes na mão autônoma e fui para um canto escondido preencher, pela primeira vez na vida, o quarto cheque para pagar uma só conta.
Já havia suspeitado da sua existência (a dela) ao reler textos recentes e constatar palavras intrometidas ou sem sentido, grafadas errado, nas quais nunca pensei mas “alguém” escreveu por mim – ela é não só desonesta como meio ignorantona. Eu mesma, sempre escrevo qüinqüênio com dois tremas; exceção com cedilha; sou cidadã exemplar, fanática pagadora de todas as contas e jamais assino cheques com outro nome.
No documentário do Discovery a mão terrorista quebrava tudo, maltratava seu dono, atacava pessoas, podemos até pensar em reação preventiva americana mas, evidentemente, era um perigo público aquela esquerda.
A minha não – é dissimulada, age nas sombras, numa conhecida tática de guerrilha ideológica, com a clara estratégia de revelar minha ignorância e malícia e me desmoralizar diante dos outros e de mim mesma, coisas da direita.
O feriado passado no Copa D’Or, com água gelada mas sem cafezinho, horas e horas sentada numa cadeira, serviu afinal para alguma coisa: desnudou o inimigo. Assim, estou precisando voltar à linha dura lá em casa, reafirmar os poderes absolutos e baixar um ou outro ato institucional para que nem pensem em botar as manguinhas de fora. Mando eu e estamos conversados.
Enquanto isso, as besteiras que aparecerem por aqui vocês já sabem quem foi.

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