Alguns livros e filmes mudam a nossa vida. São queridos como pessoas queridas e, como elas, inesquecíveis. Nos últimos tempos, só tenho lido e visto o que está fadado ao esquecimento. Dramas e tramas vazios de filmes, novelas e livros – a exibição da futilidade que norteia a vida e as escolhas – tornam-nos tão esquecíveis como alguns falsos encontros: passamos algumas horas agradáveis mas não somos transformados nem marcados para sempre, foi apenas uma experiência interessante. Talvez não haja nada pior do que ser uma experiência interessante para alguém, quer se trate de um livro, um filme ou uma pessoa.
Há três filmes na praça que devem ser vistos: o díptico “A Decadência do Império Americano” e “As Invasões Bárbaras”; e “Adeus, Lênin”.
São bastante engraçados, embora não provoquem gargalhadas. Platéia e personagens se divertem com um humor para “iniciados” e os dois primeiros mostram o mundo acadêmico canadense – que parece ser igual a qualquer outro ambiente universitário do Ocidente. Pode ser que na China ou na Arábia Saudita seja diferente, não sei.
Os três filmes lembram A Vida é Bela, do Begnini, de alguns anos atrás, em que um pai transforma um campo de concentração num parque de diversões para que o filho pequeno não perceba que a vida quase sempre é feia. Só que, em 2004, são os filhos que fazem isso para os pais.
Nos filmes canadenses, os personagens são professores universitários em dois momentos – no final da década de 70 e vinte anos depois. Os mesmos atores, vinte anos mais velhos, dão credibilidade à trama. O que vai eclodir no segundo filme, já é antecipado no primeiro: todo mundo é inteligente, com boas referências culturais, porém as vidas pessoais são lamentáveis. Há dificuldade em lidar com o real e todos constroem um mundo de mentiras agradáveis para os parceiros amorosos e a família. Mas o fazem com muita graça, muito humor, e os filmes são recheados de “boutades” interessantes. Apenas interessantes. E eles seriam a elite intelectual do império americano em seu declínio. Seriam os “homens de conhecimento”.
O conhecimento que não gera sabedoria, gera um mal maior – talvez – do que a ignorância. Produz a “vanidade”, ou a vaidade: o atributo do que é vão. Do que é oco. Do que não tem densidade. O conhecimento ou constrói o sábio ou se esgota em exibições tolas e vaidosas de si mesmo.
Não é raro perceber, em intelectuais, a vaidade do que seu cérebro pode engendrar, sem se darem conta de que estão cultuando cada vez mais o vácuo em vez de cultuar o cosmo. Sacrificam para o nada – já que no nosso mundo o ofício do intelectual é sempre um “sacro ofício” – e se orgulham e se comprazem dos seus espirituosos ditos frívolos. Reduzem o real a um jogo de palavras, pretensamente inteligente, quando, quase sempre, o encontro com o real é mudo. Ao menos, lacônico. O real é a etapa final da Criação, em que deuses e homens têm papéis iguais.
Transitamos, cada vez mais, num universo vazio, recheado de imagens e palavras. Temos uma abundância jamais sonhada de possibilidades de habitar o vazio, quando a luta do homem, desde seus primórdios, foi organizar o caos e jamais mergulhar nele.
Num dos filmes, um filho – por amor ou caridade – compra meia dúzia de significados para o pai, antes que ele morra. Constrói ou aluga um cosmo, um universo organizado, para que ele não termine no nada. Em outro, um filho cria um ambiente também teatral para a mãe doente para que ela não encare a derrocada do seu mundo. Mais ou menos o que o italiano trêfego fez para o filho, num campo nazista – a generosa pantomima que encobre a realidade, o refúgio num mundo de mentira para camuflar a dificuldade do mundo de verdade onde a morte encerra o espetáculo. A vida só se mantém eternamente bela para quem tem 7 anos de idade.
A capacidade de suportar a dor parece que diminui, de geração a geração. Hoje, batalhões de médicos e terapeutas se revezam para nos fazer acreditar que é possível suprimir a dor de viver, como se alma fosse dente e pudesse ser anestesiada quando nos é arrancada. E quem viveu sem ter a alma esfacelada? Poucos nos dão a mão (e o sentido de “terapeuta” é apenas acompanhante) e nos acompanham na viagem pelo real. E real não é o apenas material; mas aquilo que comporta uma verdade. Então, real não é só o corpo físico. O amor é real. A fraternidade. A dignidade. Quem quer que os tenha conhecido pode atestar a sua realidade. Chegam a ter peso. E doem.
Nos filmes, o amor filial cria mentiras para os pais, na esperança, talvez, de merecer as mentiras dos seus filhos na hora de morrer e acreditar que sua vida valeu a pena. Na ilusão de vê-la mais bonita em retrospectiva, como um filme que pode ser editado. Vaidade das vaidades.
O oposto da realidade, da densidade, é a vacuidade – a vaidade.
Qualquer aposta – ou projeto, como se diz hoje – no vazio faz sucesso e encontra adeptos. Algum deus perverso, ou anti-deus, deve estar a rir bastante: o mundo se move na indústria laboriosa de organizar o inexistente. Multidões passam suas vidas trabalhando para construir a própria vaidade ou a alheia. Estamos em plena era da frivolidade, da leveza, e o que é denso saiu de moda. O que é pena, porque afinal só lembramos daquilo e daqueles que pesaram o suficiente para nos marcar.
Talvez só nos demos conta da pouca densidade do que fizemos na hora de morrer. E aí, um filho piedoso armará um circo para que nem na hora da morte a consciência possa chegar perto. Para que não haja a dor do confronto com a verdade nem nos momento finais.
E talvez uma cadeia infinita de vaidosos e filhos piedosos esteja se desenvolvendo debaixo dos nossos narizes: três filmes, ao mesmo tempo, dão o que pensar. Talvez sejamos em algum momento, elos desta cadeia. Mas, vaidosos – vocês sabem – têm nariz empinado. E não conseguem ver o que acontece debaixo mesmo do que lhes está na cara.
A frivolidade como estilo de época
Jan 16th, 2004 by Maria Helena