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A crônica é um texto datado, cronológico, sujeito ao tempo e ao seu deus. Mil assuntos pululando dentro da cabeça mas não dá para esquecer que é a primeira crônica do ano e Cronus – o velho deus do tempo – pede passagem. O tempo envelhece tudo que um dia ousou ser novo e torna crônicos o desejável e o indesejável. O primeiro mês do ano é presidido por Saturno ou Cronus.
O calendário oficial para o nosso planeta é o calendário Gregoriano, que conta o tempo em “anos do Senhor” a partir do nascimento de Cristo. Este calendário foi uma reforma do calendário Juliano – feita por Júlio César – que por sua vez reformou o calendário romano de Numa Pompílio, elaborado por volta de 700 A. C.
César oficializou um calendário já bem próximo da verdade astronômica do ano solar com 365 dias e 6 horas. Acrescentou-lhe dois meses que não existiam, Janeiro e Fevereiro, decretou que o ano começaria em primeiro de Janeiro e não mais em 23 de Março, no equinócio da Primavera, e, aproveitando a reforma e com vaidade leonina, mudou o nome do quinto mês do calendário antigo para Julho, homenageando a si próprio, que nascera naquele período. Anos mais tarde, Augusto faria o mesmo com o mês de Agosto. Algumas coisas são crônicas.
Dado a César o que é de César, também foi dado a Cronus o que lhe era de direito – abrir o ano.
Cronus/Saturno foi assimilado em Roma ao deus Jano – patrono de Janeiro -, o deus das portas e das passagens, o temível “guardião do umbral”.
Thomas Bulfinch, que escreveu sobre as divindades do Olimpo, comenta que elas já não pertencem mais à Teologia mas à literatura e ao bom gosto. E, às vezes, ao território das curiosas coincidências. Jano (de janua, porta) em português seria Jânio e creio que não aconselharia este nome a ninguém já que é o “deus do olhar divergente”, o que pode ser até simbólico mas pouco estético. É também o deus dos dois rostos – um olha para o passado, o outro para o futuro – e a primeira moeda cunhada em Roma trazia a sua efígie. Jano era adorado e temido.
Nas passagens do ano, somos todos tentados à retrospectiva e à perspectiva. Olhamos para trás, na tentativa de entender o que passou, e para a frente, na veleidade de adivinhar o que virá. O deus tutelar de todos os começos continua vivo dentro de nós.
Não sou muito otimista quanto ao que fizemos no passado. O crescimento da população e o aumento vertiginoso da miséria; a falta de água, já estrategicamente disputada pelas potências; o desemprego mundial; o lixo radioativo que se acumula e ninguém sabe o que fazer com ele; o aumento da temperatura média e suas já previsíveis conseqüências não me deixam muito tranqüila quando olho para a frente. Mas, democraticamente, entendo que a verdade deve estar mais próxima do olhar coletivo do que da perspectiva individual e tenho procurado nos jornais e na Internet o que mais preocupa os cidadãos nesta passagem de ano. Surpreendem-me, os cidadãos.
O fichamento e as digitais dos americanos que nos visitam, ocupam o centro das inquietações nacionais. Todos se pronunciam, apaixonadamente, e a grave questão é discutida até em editoriais.
O segundo lugar, aqui no Rio de Janeiro, tida como a cidade mais politizada do país, é ocupado por notícia local – comentando-a, cartas chegam em avalanche às redações. Nosso equilibrado prefeito decidiu acabar de vez com o costume incivilizado de urinar nas ruas e declarou a “guerra ao xixi”. Alavancando a campanha, a frase: “Não foi essa a educação que sua mãe deu para você”. Contra ou a favor, mobilizou a cidade inteira. De uns dias para cá, só conseguimos pensar em xixi.
E assim passamos a primeira semana do ano, período dedicado a Cronus, por tradição milenar. Em que seria, talvez, desejável que definíssemos o que corre o risco de se tornar crônico – dentro e fora de nós – e o que ainda tem saúde e flexibilidade suficientes para se modificar.
Como não é impossível chegar a um consenso sobre o melhor detergente para remover cheiro de xixi e graxa dos dedos, creio que nossos problemas têm solução e dá para augurar um felicíssimo 2004 para todos nós!

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