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O sonho de Lenora

tritao.jpgA primeira vez que vi Lenora, ela era um homem. Um senhor que poderia ser seu pai ou até seu avô. Mas parecia ter havido um terrível engano ali, era o que ele me contava como um segredo que precisa desesperadamente ser revelado, ser gritado em praça pública e no entanto, por uma dessas escolhas da vida, havia sido sepultado sob a aparência sólida e absolutamente normal de um chefe de família aposentado.
Antenor procurou-me no consultório e, já na primeira sessão ao divã, contou sua triste história, que não vou reproduzir na íntegra. O que importa é que sua mãe não se conformava em ter um filho homem, dizia que o teria abortado se soubesse e, aproveitando-se das longas ausências do marido militar, criou-o como uma menininha, chamando-o carinhosamente de Lenora. Acrescente-se a isso uma infância vivida entre mulheres, em meio a imagens e notícias da Segunda Guerra – o espetáculo de horror e violência que parecia ser o destino dos homens em contraste com o fútil e harmonioso universo feminino, tão mais acolhedor.
Há mais coisa, sempre há muito mais coisa a dizer sobre alguém mas, com o que temos, posso continuar.
Ela só teve consciência de que era homem quando uma amiga mais velha referiu-se a ele como “bicha”. Foi pesquisar o que era mas não se viu nessa espécie de caricatura do feminino, cheia de maneirismos e exageros que não correspondiam à sua natureza doce e contida. Ela era uma moça suave como poucas mas, no fundo, sabia que era diferente. A natureza não lhe dera um corpo correspondente à idéia que fazia de si mesma.
Então compreendeu que, sendo quem era, só podia ser duas coisas: homem ou bicha. Escolheu ser homem até porque seu pai estava se reformando e vinha finalmente morar com a família. Junto com o pai vieram os hormônios da puberdade e a barba, os músculos, a voz grossa, as garotas. Sim, porque ele ficou um rapaz muito bonito e as mulheres adoram homens femininos.
Agora ele era Antenor e estava prestes a entrar para o exército. Hesitou. Chegou a formular pensamentos de fuga – tentar vida nova como mulher, bem longe dali, onde a vergonha do pai e o desprezo da mãe não pudessem atingi-lo.
Um dia bem cedo foi nadar no mar. Suas costas largas o levaram para além da arrebentação. Lá parou e ficou chorando, olhando o horizonte. As traineiras indo e vindo, um navio lá no fundo, tudo lembrava distância, afastamento; ele só queria ir embora.
Não foi. Voltou, tomou um banho frio e alistou-se nesta mesma manhã.
O exército foi uma pá de cal em sua sensibilidade feminina. Ele aprendeu a ser durão. Criou calo na alma, uma crosta dura e impenetrável que escondeu para sempre suas lágrimas.
Daí em diante foi homem: casou, trabalhou, teve filhos, ganhou um dinheiro razoável e foi muito, muito infeliz. Seu pai e sua mãe não o amaram mais nem menos por isso – pai e mãe não amam o quanto a gente merece mas sim o quanto podem.
Ele se perguntava se tinha valido a pena o sacrifício, achava que não. Estava deprimido, sentia-se velho e cansado. Tinha palpitações intermitentes, uma falta de ar crônica e sua claustrofobia estava piorando com a idade. Tinha pavor de morrer porque ainda não tinha sido verdadeiramente feliz. Pedia-me ajuda e eu não tinha uma cura para seu sofrimento. Não podia dar-lhe um corpo mais adequado, nem o amor de sua mãe, nem sua vida de volta.
Nesta noite eu tive um estranho sonho, do qual não participava senão como espectadora.
Vi Antenor no mar além da arrebentação, de manhã bem cedo, chorando e olhando o horizonte; vi os barcos de pesca que iam e vinham. Vi o que ele via.
Eis que surge um tritão. Belíssimo, pele e cauda dourados, os olhos também. Reluzia todas as cores do sol que se acabava de nascer. Nadava em torno dele como alegre delfim e o convidava a ir mais longe, bem longe mesmo dali. Ele foi.
Ao chegar a uma praia remota, Antenor era mulher. Lenora levantou das águas, exuberante, torceu a longa cabeleira ruiva e foi secar ao sol a escultura que tinha agora por carne. Assim ficou estirada, nua sobre a areia branca, até que adormeceu. Alguns pescadores que estavam por perto vieram olhá-la, em pouco tempo havia uma multidão de homens à sua volta, desejando-a, sem ousar tocá-la, temendo que despertasse.
Ao acordar, Lenora correu para o mar e procurou pelo tritão mas só pôde ver seu corpo dourado sumir lá longe, entre as ondas. Chamou por ele, implorou que voltasse mas só recebeu de volta um murmúrio longínquo, embora claro como água límpida:
– Não me espere, Lenora, viva sua vida. Um dia eu volto.
Vendo-se sozinha, ela percebeu que tinha um mundo a desbravar. Deu-se conta de que estava nua, vulnerável, exposta. Os pescadores, que antes a olhavam à distância, agora vinham ter com ela, faziam gracejos e queriam tocá-la. Estava assustada, eles eram muitos, a cercavam por todos os lados, os corpos suados e curtidos de maresia, peles salgadas, chegavam a machucá-la em sua sofreguidão, deixaram-na tonta com seus bafos a álcool e apertavam o cêrco, sufocando-a até ela desmaiar. Esse foi o início da movimentada e intensa vida sexual de Lenora, que foi a partir de então seu ganha-pão e muitas vezes seu prazer. Teve centenas, talvez milhares de homens. Gordos, magros, carecas, militares, traficantes, teve até embaixadores. Alguns eram mesmo lindos, uns poucos foram gentis, três ou quatro quiseram casar, mas Lenora sabia que estavam só de passagem. Todo dia, ao amanhecer, ia para a praia e ficava olhando o mar, à espera de seu tritão de ouro.
Assim passou-se uma vida e Lenora, como toda mulher, começou a murchar. Foi perdendo lentamente o viço da pele, a firmeza das carnes, o brilho dos cabelos. A clientela foi minguando e ela ajeitou-se, com suas economias, numa casinha de frente para o mar.
De manhã ia para a praia e ficava tricotando sapatinhos para seus muitos afilhados, enquanto lembrava, entre sorrisos, os amigos e amigas que fizera, as farras, as noites de diversão, música e sexo. Gargalhadas e champanhe em festas faraônicas. Ressacas em quartinho imundo de motel barato. Não se arrependia de nada. Mas lá no fundinho de sua alma ainda esperava o tritão e, com o rabo do olho, espiava o mar.
Eis que uma bela manhã sai do mar um homem. Um senhor de sua idade, com olhos dourados e doces como mel. Caminha em sua direção. Ela vê em seu olhar que é ele, não há a menor dúvida. Abraçam-se, beijam-se, trocam palavras carinhosas, juras de amor eterno. Choram juntos um mar de tristezas que já não sentem mais. Só a alegria do encontro, ainda que tardio.
Ela diz que ele lhe dá segurança e a faz amada como ninguém. Ele diz que ela é luz em sua vida, oxigênio para o seu espírito e o faz sentir-se um novo homem.
No meu sonho, Lenora e Antenor foram felizes para sempre. O par alquímico perfeito, Hermes e Afrodite enfim reunidos. E que nem a morte, essa tirana, os separe nunca mais.

2 Responses to “O sonho de Lenora”

  1. Karina says:

    Oi Amor amor
    Amei esse conto (e o da mae de cabelos prateados também, acima)…. como a literatura nos transporta para um outro universo nao é? Parabéns de novo…
    Beijos, saudades
    Kary

  2. sao says:

    Tocante este conto, que me comoveu muito.

    Um abraço par si e outro para Lenora.

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