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Ossos do Ofício

Coube-me a Sexta-Feira da Paixão.
Então, vamos falar um pouco sobre a paixão de Cristo, já que o tema está atualíssimo, ocupando mentes lúcidas e ferindo corações sensíveis, por conta do filme do Mel Gibson. No ano que vem não provocará tanta emoção, como não provocou no ano passado. Precisamos que o cinema ou a TV nos lembrem do que deve nos compungir.
A paixão – ou pathos, ou sofrimento – é um vínculo que se estabelece entre aquele que sofre e aquele que o vê sofrer, ou toma conhecimento do seu sofrer. Para alguns, o sofrimento gera antipatia. Para outros, simpatia; nos identificamos com ele. Nunca sabemos como o pathos atuará. O certo é que não lhe somos imunes.
As teologias estão repletas de sofrimento. Deuses e profetas são sofredores porque é preciso estabelecer um vínculo com a humanidade e o que temos em comum não é, por suposto, a felicidade, e sim o sofrimento. Santos e mártires tiveram biografias sofridas e cumpriram via dolorosa: raramente a vida alegre dá direito à santidade. Quando o destino não providenciava a dor, a auto-flagelação, o deserto, o jejum ou o cilício davam um jeito de garantir o reino dos céus e a veneração dos homens.
Limitar a jornada cristã ao padecimento físico é banalizar o Cristo no homem Jesus. Fazer um filme sobre Cristo com ênfase na tortura a que foi submetido – e as conseqüentes questões idiotas: quem foram os culpados? – é retirar o pathos da sua trajetória simbólica. Cristo não foi Cristo por ter sido o campeão do sofrimento. Em qualquer época ou latitude homens e mulheres condenados à tortura sofreram mais do que Ele. O que quer que lhe pudessem fazer terminaria ao pôr-do-sol porque ao pôr-do-sol começaria o Shabat – sua sessão de tortura durou algumas horas.
Todos nós – que vivemos em países onde a tortura foi institucionalizada – sabemos que na vida real não foi bem assim. A tortura durava semanas ou meses. Metódica. Científica. Aplicada com cuidado para que o torturado não morresse. Às vezes, se descuidavam e morria mesmo; mas não era essa a intenção, era mantê-lo vivo para que tudo continuasse no dia seguinte.
Torturadores, ao contrário do que mostra o filminho do Mel Gibson, são brutos mas não são burros. Não bateriam tanto num condenado porque seria humanamente impossível subir o Calvário com o lenho ao ombro e não pensariam, certamente, em carregá-lo num andor. Só o Filho do Deus poderia caminhar depois daquela pancadaria, não o Filho do Homem encarnado que Jesus afirmava ser. E, convenhamos, que só a possibilidade do corpo de Cristo ter os mesmos limites que o nosso estabelece o pathos com a Paixão. Se sentisse diferente, não nos identificaríamos.
Mas, neste ano da graça de 2004, estamos todos ligados ao que aconteceu na Galiléia há quase 2000 anos. A Paixão voltou a despertar paixões porque Hollywood a ressuscitou. E desta vez diferente dos filmes anteriores, em que a história bíblica era recontada como o que sempre foi e por isso nunca fez tanto sucesso: uma história sagrada, desvinculada do real, porque o território do profano é um e do sagrado é outro. Humanizaram Cristo, reduziram-no a pó – “quia pulvis es, ad pulverem reverteris”, fórmula adequada ao humano, não ao divino -; e Vieira já advertia que “não se medem pela mesma medida os decaídos e os alevantados”. É lamentável erro de raciocínio.
Assim, Gibson continua valendo pelo que sempre teve: um excepcional par de olhos azuis. Teve um belo orçamento também, para filmar o Evangelho à sua moda. Dinheiro consegue comprar bela fotografia, cenários, figurinos e um som impactante – tudo que seduz nossos sentidos e provoca emoção. Além de um sangue bastante convincente para expulsar da sala os estômagos mais sensíveis.
Se os olhos azuis, depois da Galiléia, se voltassem para o Cone Sul em busca da tortura cinematográfica e filmassem uma sexta-feira nos porões do Dops há uns trinta anos, com seios arrancados à alicate, tubos de PVC, ratos, baratas, carnes expostas e um som de arrepiar, talvez tivéssemos uma santa brasileira. Talvez as pessoas também saíssem enojadas do cinema e se discutisse a sério o sofrimento humano; não o divino, que não temos a menor noção do que seja.
A Paixão de Gibson é um grande espetáculo, como foi, na sua época, Guerra nas Estrelas, mas o avanço da tecnologia o tornará esquecível em poucos anos. A história é ótima, pena que não seja dele. Como pertence um pouco a cada um de nós, temos o direito e até o dever de malhar o seu roteiro.
Não estamos mais em tempos de Inquisição e podemos ser cristãos, como Gibson, embora desvinculados da instituição que tutela o Cristo. Como podemos ser brasileiros e discordar dos nossos tutores – a época do Brasil, ame-o ou deixe-o já passou -, podemos ser cristãos e discordar de Roma. Parece que Roma aprovou Hollywood.
Mas a visão de Gibson – diferente dos antigos filmes que seguiam singelamente os passos do Evangelho -, humanizou o Deus e não divinizou o Homem. Prestou um desserviço aos Dois. O realismo não consegue chegar ao místico, como o misticismo não dá conta do real. Devemos ser materialistas ao abordar a matéria e místicos quando tratarmos do sagrado.
Como dizia o próprio personagem principal: Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

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