(Mas não leve isso tão a sério. Quem sou eu para escrever tratados? Não sou filósofa juramentada e, o sendo apenas em sentido lato, não me arrogo a alcunha como outros tantos. Poderia dizer que sou psicóloga, atriz, mãe, mulher, brasileira e tal e coisa, mas isso bem pouco diz do que vai em mim. Se títulos não atestam a consistência de um pensamento, muito menos o farão os falsos ou enganosamente ostentados.)
Isto posto, vamos ao riso que, de todo modo, é o que nos apraz. Quem há de negar que o humor é o que torna a vida suportável? E já que me interessa a vida mais que as seitas da ciência, falo aqui como quem pensa mas, sobretudo, como quem ri. O riso é mais humano que o pensamento, prova disso é que é universal, enquanto que as filosofias geram sempre controvérsia.
A hilariedade congrega, faz gargalhar em uníssono gregos e baianos. Os bebês nascem sabendo rir, embora cientistas muito sérios afirmem que eles não sabem o que fazem. Mas o que é preciso saber para achar graça na vida? A maturidade, ao contrário, faz perder boa parte desta capacidade espontânea. A vida adulta nos dá motivos de sobra para franzir o cenho, como defesa ou mesmo para fazer aquela cara de conteúdo que expressa nossa adesão ao lado sério da existência.
A seriedade é a verdadeira negação do riso e não o choro, como se poderia pensar apressadamente. O choro é irmão do riso, tão universal e inato quanto, e ambos produzem um efeito levemente narcótico, já reparou?, aliviam a dor e dão onda. Só que o choro faz a gente ficar quietinho, esperando a dor passar e o riso nos deixa mais animados, relaxados o suficiente para enfrentar o problema com mais coragem. São recursos próximos, levemente diferenciados para atender a variadas situações.
O riso é social por excelência. Dificilmente rimos sozinhos; a coletividade, ao contrário, multiplica e potencializa o riso. Houve uma vez, numa cidade indiana, um surto de riso que afetou toda a população por dias e espalhou-se pelas aldeias vizinhas, preocupando as autoridades que, às gargalhadas, mal conseguiram despachar as medidas emergenciais que a insólita situação demandou.
O choro, por sua vez, é evitado ao máximo em público, especialmente pelos homens. É um descontrole no mínimo constrangedor. Pode ser lido como um sinal de fraqueza Pode mesmo ser uma vergonha terrível como a que faz, em I-Juca Pirama, o velho índio amaldiçoar seu filho (Sê maldito, e sozinho na terra/ Pois que a tanta vileza chegaste/ Que em presença da morte choraste/ Tu, cobarde, meu filho não és.) Mas o choro profundo e sincero é sempre transformador, pois que ao final o bravo e lacrimoso guerreiro tem seu valor reconhecido ([
]E à fé que vos digo:/ Parece me encanto/ Que quem chorou tanto /Tivesse a coragem que tinha o Tupi!)
E não é que a forma mais bela e universal de humor é justamente a que transforma a humilhação em graça? O chamado humor patético de pathos, sofrimento. A comicidade do palhaço, cuja máscara facial representa o pateta o emocionado, o que chora em público com nariz vermelho, olhos inchados e a boca virada para baixo. O ridículo, que tem a generosidade de oferecer sua faceta mais íntima e vulnerável ao escárnio público. O que leva tombo, apanha, sofre de amor e não tem juízo nem vintém. Mas que, apesar de tudo, consegue rir de si mesmo porque no fundo é um artista, um acrobata, um ilusionista. Que vai sobreviver incólume a todas as quedas e infâmias para fazer tudo outra vez no próximo espetáculo. E quem sabe, depois de tirar a maquiagem, não é ele quem vai dormir com a bailarina? O senso de humor é uma arma de sedução poderosa.
Há outras formas de humor, não-patéticas e bem menos inocentes. Há as formas satíricas (vêm dos sátiros, aqueles homens-bode gregos), que se utilizam de referências sexuais ou outros temas-tabu e têm a importante função de liberar os conteúdos socialmente reprimidos mas podem facilmente descambar para o grosseiro, o gratuito e o apelativo. Não são, por exemplo, adequadas às crianças, fazem corar as virgens e os celibatários e podem chocar as mentalidades puritanas.
Temos também o humor ferino, sarcástico. Esta forma pode ser bem-sucedida com o público mas não tem a grandeza da auto-imolação. Oferece em sacrifício a imagem do outro e tira o seu da reta; se exclui do ridículo que aponta e é tão fácil ver o ridículo no outro! Não há quem escape indene ao olhar de um cáustico-compulsivo. O problema de ser tão mau é viver no mundo horrível que daí se enxerga.
Claro que existe a ironia fina, destilada com elegância contra quem bem merece. Esta, convenhamos, é deliciosa.
Outra forma bem aceitável de humor maldoso é a ousadia do bobo-da-corte, que poderia achincalhar o fraco para agradar os poderosos como fazem os covardes, que são pouquíssimo engraçados mas aponta sua mira contra o próprio poder que o sustenta, desafiando-o a uma reflexão. Podem ser observações sobre as deformidades dos costumes e do poder que permitam amplas associações, como os bobos de Shakespeare, que conseguem manter, através dos séculos, a jovialidade e o petulante vigor. Nisso se aproximam do espírito imortal do clown, apenas saindo da esfera do sofrimento individual e assumindo a postura de auto-crítica social.
Ou podem ser ataques cirúrgicos, especificamente relativos a pessoas e fatos em evidência naquele momento. Alguns humoristas que cutucam os políticos e as celebridades cumprem essa função de cronistas do aqui-agora. O problema desse humor mais referenciado é que ele é datado e restrito os fatos do momento caem rapidamente no ostracismo, e não são compreendidos por quem esteja fora do contexto. Não existe nada mais velho que o casseta e planeta da semana passada, assim como um esquimó não moveria um músculo da face ao assistir a uma cena do Macho Gracinha com o Lábio Assunção.
No entanto, Carlitos o palhaço-vagabundo, com sua melancolia adorável não perde nunca a graça. Vive ainda em nosso imaginário e viverá enquanto existirem pobreza, inocência e amor-não-correspondido coisas de que a gente tanto se envergonha e que ele converte em poesia risível.
Nada é mais transformador que uma boa gargalhada, principalmente quando a piada é nossa dor mais funda. Chorar de rir da desgraça nossa de cada dia, essa hilária condição de ser humano num mundo cão.
Você já deu uma boa risada hoje? Um risinho à toa, que tal? Pra tirar ruga da testa é melhor que botox. Satisfação garantida ou seu sorriso de volta. : o)
* * *
Quer um bom exemplo de humor patético? Leia Primavera Eterna!
Pequeno Tratado Sobre o Humor
Apr 8th, 2004 by Christiana