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Limite

Tive um tio postiço que quando jovem fazia halterofilismo e chegava a levantar 99,400kg.
– 99 e 400 você levantava fácil?
– Fácil não era. Suava. Mas mantive a minha marca por muito tempo.
– E por que não chegava a 100? Ou ao menos a 99 e meio?
– Porque era o meu limite.
Ninguém gosta de limites. O limite é a fronteira, o confim, o ponto. É o que nos reduz, nos restringe. E nos estreita, impiedosamente.
Como todo mundo tem direito a meia dúzia de esquisitices, eu tenho as minhas 4 ou 5. Uma delas é jogar xadrez com o computador. Meu programa atende pelo pitoresco nome de “Genius” e todos os dias eu me sento à frente do gênio e começamos a batalhar. Assim como o tio halterofilista, também treino há muitos anos. Temos níveis para atuar que são chamados de “easy levels” e de easy não têm nada: levei um tempão para vencê-lo no nível 1 (ele é seriíssimo e não se distrai nunca).
Mas hoje, modéstia à parte, nos níveis 1, 2 e 3 ganho dele falando ao telefone ou passando esmalte nas unhas. Do 3 ao 9 tenho que pensar – cada vez mais demoradamente – mas há meses que ele não leva uma. O diabo é o nível 10.
Não gostamos de pensar em limites porque o grande limite é a morte. É no momento da morte que passamos de uma virtualidade para uma realidade, até a hora de morrer somos uma perpétua possibilidade. Através da série de escolhas e recusas da vida cotidiana modificamos a cada dia o que somos e o que somos hoje não é o que seremos amanhã, portanto não é o nosso ser real. Perseguimos a realização do ser enquanto temos vida mas só a alcançamos quando a morte vem colocar um termo à nossa busca.
Chegamos ao mundo plenos de infinitas possibilidades: Napoleão dizia que todo soldado trazia um bastão de marechal “dans sa giberne”. Parece que o imperador, entre outros predicados, era bem-humorado. Mas a época e as circunstâncias criaram milhões de soldados e só um Napoleão. A História reduz estas capacidades infinitas e pouquíssimas vêm a se efetivar. O que faria com Napoleão, Buda, César ou Maomé se tivessem nascido 50 anos antes ou depois?
Aquele que é verdadeiramente o nosso ser não é o que somos atualmente mas o que desejamos ser; só desejamos ser o que potencialmente somos. Na verdade, estamos sempre adiante de nós. E ainda não houve uma sociedade sobre a terra que permitisse ao homem cumprir sua potencialidade virtual.
Mas, enquanto não nos colocam o grande limite, vamos tentando. E alguns têm a consciência de que seu ser verdadeiro não está no presente – talvez esteja no futuro. Desconhecemos quem somos até que a morte venha colocar o ponto final nas nossas possibilidades e nos revele a nós mesmos.
Para que tivéssemos alguma realidade hoje, seria preciso que a vida fosse estática e nós imóveis; sempre parecidos com o que fomos. Isto é o contrário da vida, que é movimento, marcha, transformação, ou melhor, transmutação contínua. Mesmo para aqueles que se acreditam personagens de valor. Pretender se perpetuar como são, porque estão bem onde estão, subestimando a influência de eventos exteriores, da evolução ou da revolução – que é a evolução apressada – revela insuficiência de julgamento. É certo que tudo mudará.
Assim, ainda tenho alguma esperança não só de que as relações sociais se modifiquem, como de que ultrapassarei o nível 10. Como meu ser verdadeiro está no futuro, quem sabe um dia ainda não jogarei xadrez com o Deep Blue? Ou o Kasparov, que é quase a mesma coisa?

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