Você diz a verdade
e a verdade é seu dom de iludir.
Como pode querer
que a mulher vá viver sem mentir?
– Caetano Veloso
Acho essa letra do Caetano uma pérola. Hoje estou no clima das citações polêmicas, repararam no título? (obra nem tão inspirada do Erasmo, não o de Rotterdam mas nosso Tremendão. Eu poderia ter usado “elogio da mentira”, ficaria mais culto, mais pomposo e mais cínico… não, fico com meu amigo de fé, mesmo. Os patrulheiros podem cair de pau, mas quem não gosta de Raul Seixas, Leminski e Saramago gosta do quê, afinal? Nesse caso não me incomodo que não gostem de mim também.)
Mentira, claro que me incomodo, todo mundo quer ser amado, a despeito das divergências estéticas. E nem estou tão interessada em defender minhas preferências musicais ou literárias, acho um saco ficar polemizando sobre isso. Mas quem não mente de vez em quando só pra passar uma impressão superior, ou mesmo pela razão fútil de proferir uma frase de efeito?A mentira filosófica enobrece a existência, imagina se a gente fosse confessar todas as mesquinharias que sente e pensa… mas cabe aqui uma importante distinção entre a mentira honrosa e a hipocrisia barata ou outras formas indignas de faltar com a verdade. É preciso alguma arte até para enganar o próximo. E muito principalmente para enganar a si mesmo.
Mentira não é coisa que se deva cometer o tempo todo – embora muita gente o faça – porque, como todo vício compulsivo, acaba por prejudicar a saúde. Os efeitos colaterais mais visíveis são nariz comprido, rabo preso, sorriso amarelo e baixa estatura moral (você não sabe que a mentira tem pernas curtas?).
Também não se deve mentir pra todo mundo. Mentir para o analista é jogar dinheiro fora. E para quem você ama, é jogar fora o próprio amor.
No entanto, mesmo nesses casos, certo grau de omissão é até recomendável. Não precisa dizer pro namorado que seu professor de ginástica é lindo, nem pro seu analista que ele tem mau hálito. Pior ainda se o seu analista é que for lindo e o seu namorado tiver mau hálito. A verdade pode ser uma forma requintada de maldade, quando usada sem critério.
E de todo modo, embora pareça objetiva e tenha mesmo este status enquanto categoria ideal, a verdade é sempre um ponto de vista. Portanto é entidade sujeita a tendências pessoais, ideologias, crenças e miopias várias. Acreditar na Verdade é mais pernicioso que a crendice. Com exceção de algumas seitas suicidas orientadas por psicóticos muito convictos que conversam com alienígenas, nunca vi alguém matar ou morrer em nome dos gnomos ou da chama violeta. Já a idéia do Bem está na raiz de todas as guerras da humanidade.
Eu fujo das covicções e persigo as lendas. Podem me chamar de ridícula, eu não ligo (mentira!). Minha realidade é mais bonita que a dos céticos.
Viva a mentira e a poesia que ela torna possível.
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Elemental, meu caro Watson
Inocentes fantasias são capazes de enfurecer certos espíritos racionalistas torturados. Um exemplo famoso é o das fadas de Cottingley. Em 1917, Frances Griffith e Elsie Wright, duas meninas inglesas de 10 e 16 anos, tiraram uma série de fotos em que posavam ao lado de fadas e duendes. As fotos foram parar nos jornais e geraram grande polêmica.
Sir Arthur Conan Doyle, que se havia iniciado em estudos teosóficos, interessou-se pelo caso. Estava estudando energia psíquica, a fotografia estava em seus primórdios e pareceu-lhe possível que as garotas tivessem registrado a matéria sutil que a Teosofia chama de ectoplasma. Esta energia estaria presente em todos os corpos vivos e também nesses seres nem totalmente densos nem totalmente espirituais chamados elementais – fadas, elfos, gnomos, ondinas e salamandras – e emitiria alguma luz, o que poderia sensibilizar os negativos em condições especiais. As meninas afirmavam que obtiveram das fadas, com quem brincavam todos os dias na beira do riacho, permissão para fotografá-las.
Verdade? Suponho que não totalmente, mas o fato é que Conan Doyle investigou o caso e ficou convencido da autenticidade das fotos. Publicou alguns artigos defendendo a história e foi alvo de ataques furibundos.
Não precisa ser nenhum Sherlock Holmes para perceber que as graciosas sílfides parecem recortes de papel. Mas precisamos lembrar que as fotografias foram tiradas por um par de crianças sem nenhum recurso de efeitos especiais. Além disso, as chapas ainda eram de vidro, caras e poucas, de modo que elas tiveram poucas chances de acertar. No entanto as fotos saíram todas lindas e o efeito ficou muito bom. Então, no mínimo, Elsie e Frances eram excelentes fotógrafas! Tinham inventividade, estética e muito senso de humor. E vamos combinar que Conan Doyle, como detetive, era um grande escritor.
Vi essas fotos pela primeira vez na revista Planeta, eu devia ter uns seis anos. Foi um impacto revigorante sobre a minha fantasiosa mente infantil, recém-esvaziada pela cruel revelação de meu irmão de que papai noel não existia. Deixemos as fadinhas de Cottingley seguirem seu caminho poético de devolver a magia à nossa vida densa e limitada.
Viva a imaginação e o mundo de sonhos que ela torna possível.
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Semana que vem vou falar de realidade nua e crua, a vida nas ruas, sangue, suor e violência sob a ótica de um policial que arrisca a própria vida para defender a lei e a ordem.
Caiu, caiu, primeiro de Abril.
Pega na Mentira
Apr 1st, 2004 by Christiana