Feed on
Posts
Comments

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
(…)

Oração ao Tempo / Caetano Veloso
Sabe aquele filme tão chato que, ao fim de duas horas, você olha no relógio e só passaram 15 minutos? E aquela pessoa tão maravilhosa que quando você dá por si já é de manhã? Uma vida de felicidade dura um piscar de olhos e um instante de agonia se arrasta séculos. O que se prende na ampulheta é areia, o que se mede num relógio é vibração de quartzo, o tempo não fica em lugar nenhum além de uma impressão na gente. A gente, no final, também não fica e nossa memória, por boa que seja, um dia se esvai. Por importantíssimos que sejamos, imortais em nosso tempo, pereceremos como de resto tudo. Do que não seremos mais surgirá algo muito diferente, estranho ao que fomos ou desejamos. Quem sabe não é aí mesmo que permanecemos existindo, nos ratos de nossa sepultura, na flor que nasceu ali? No vento que dispersa nossas cinzas? (não sei quanto a você mas eu, por via das dúvidas, prefiro ser cremada, não tenho vocação pra rato)
O tempo não é um trem que passa, é o fato dele passar. Nem é, que ser é permanência e o tempo está sempre se deslocando. O tempo é a abstração de quem não está atento. Se você parar de pensar vai perceber o óbvio: o agora é tudo que você tem em mãos. Ele tem todas as possibilidades de vida e morte para você e o universo inteiro e no entanto você acaba de perdê-lo porque, no que tomou consciência, ele tornou-se passado e não está mais ao seu alcance modificá-lo. O tempo é não estar lá – é ontem, semana que vem, naquela época, inda agorinha ou nunca – e, ainda assim, é o lugar onde a gente vive, trabalha, ama, deseja, sofre. Somos cheios de tempos e contra-tempos, temperaturas e temporais. Perdemos tempo precioso tentando controlar o fluxo dos acontecimentos ou perseguindo riquezas e benefícios que talvez nem tenhamos tempo de aproveitar.
O tempo nos é dado de graça e pode ser facilmente perdido, gasto, aplicado, até vendido mas não pode, de jeito nenhum, ser comprado. Ninguém acrescenta, nem com todo o dinheiro do mundo, um segundo a seu prazo. O rico pode morrer mais bonito, com mais dentes, mais cabelo, mais gente chorando em seu velório mas, em seu dia, morre. Nem de véspera nem depois, não tem botão de soneca pra viver mais 10 minutinhos, é fim de jogo sem prorrogação. Talvez tenha o tal “replay” dos melhores momentos com o bolero de Ravel ao fundo como vídeo de casamento mas eu ainda não cheguei nessa parte. Fico curiosa pra ver, nos créditos, se vai aparecer o verdadeiro nome de Deus – a palavra, o hieroglifo, o ideograma redentor. Se não houver nada do outro lado, quero meu óbolo de volta. Tomara que eu consiga lembrar o telefone do Procon.
Tenho gostado de envelhecer. Com a idade aprendi a assoviar e a boiar. Que mais precisarei saber quando estiver no nirvana? Até lá tenho bastante tempo para esquecer, uma a uma, as lembranças e as expectativas que ainda me prendem à roda-viva das glórias e frustrações. Aos poucos vou me deslocando do centro do palco para a platéia, começo a ver meu trem passando de nada a lugar nenhum e o caminho, no final das contas, é o grande espetáculo. O tempo se faz em mim; só existe porque o percebo e, no afã de compreendê-lo, meço, divido, marco. Mas não pode ser feito por mim e nem pela minha vontade. Eu é que sou feita por ele, tenho contornos porque ele me dá limites, tenho substância porque ele me dá realidade. Para os gregos antigos, que sabiam das coisas, o Tempo (Chronos) era o pai de Deus (Zeus, pros íntimos). Talvez Ele também tenha que se conformar ao tempo. Talvez também sinta tédio, pressa, preguiça ou saudade, a Seu modo. Talvez reze para cada um de nós todas as noites, pedindo que nos iluminemos mais depressa, e nós não Lhe damos ouvidos porque estamos muito ocupados com nossa própria agenda e, afinal de contas, o universo pode esperar. Enquanto o nível espiritual da humanidade cai a níveis constrangedores, nosso senhor vai treinando sua Santa Paciência.
O tempo da espera é sempre o mais longo. O tempo da ausência é um silêncio, a mão suspensa em pausa. O tempo presente é som; se for beleza é música. O tempo distante é luz – memória ou imaginação, cinema, fotografia, impressões, reproduções, ilusão de óptica, miragem. Muita luz pode confundir, o silêncio ilumina a verdade como um embrulho.
Tenho alergia a relógios que não sejam de sol. Como ainda não inventaram um relógio-de-sol-de-pulso, não uso. Não me atraso mais do que a média, às vezes até me adianto. Busco mesmo a sincronia, arte para uma vida. Com sorte, chego lá a tempo.
* * *
Impressão minha ou as pessoas não gostam muito de ouvir falar em morte e finitude? Conheço gente que até se ofende com esse assunto, gente que fala “se eu morrer um dia…”. A esses, meus perdões pela desagradável lembrança. Já eu gosto do tema, acho fascinante e odiaria ser imortal. Eu nunca ia poder saber qual era o final do filme e ainda perderia os créditos. Ah, dá um tempo, essa eu não perco nem morta.

Leave a Reply