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Eu, como toda pequeno-burguesa, faço o estilo honesta. Da única vez em que bati num carro estacionado, saltei do carro, escrevi um bilhete toda-fofa pedindo milhões de desculpas e deixando meu telefone que eu pagaria tudo sem problemas. (Porque eu NÃO tinha seguro, não tinha dinheiro pra isso. Mas isso eu não contei no bilhete, que a pobreza é digna mas envergonhada e o tal carro era importado – uma lanterna caríssima que me custaria meses de trabalho) Por sorte o cara não ligou, deve ter pensado que era trote, ou não quis se aborrecer já que seu seguro topo-de-linha cobria tudo. De qualquer modo, na situação contrária, os donos de carros importados não foram tão generosos comigo. Deve ser preguiça de escrever bilhete, ou esqueceu a mont-blanc em casa ou sei lá eu das ricas motivações mas, no dia em que, recém-casada, eu encontrei meu chevetinho recém-lanternado (primeiro investimento conjunto do jovem casal: vender a motinho dele pra reformar o chevetinho dela, não é lindo?) abalroado de jeito e com a frente toda amassada na porta da casa da minha mãe, eu sentei no meio-fio e chorei. Não havia nenhum bilhete. A porteira do prédio ao lado, num silêncio constrangido, continuou a varrer. Anos mais tarde ela me confessou, ainda varrendo, que viu quando a perua da cobertura – que, sendo uma só pessoa, possuía DOIS LAND-ROVERS – bateu no meu carro ao sair da garagem. Só não contou naquela hora porque eu não perguntei. O silêncio dos gentios instintivamente acoberta os poderosos. Como, após tanto tempo, o “crime” já estava prescrito, eu nada pude fazer. E assim os ricos vão ficando mais ricos e os pobres, mais pobres.
Eu devolvo troco errado mesmo sabendo que estou sendo roubada no preço.
Só tem duas coisas que eu não faço: devolver dinheiro achado, porque se eu perguntar “quem perdeu 50 reais”, todo mundo vai dizer “eu” e eu sou pobre mas não sou otária. Claro que se for muito dinheiro eu vou desconfiar. Vou achar que é uma pegadinha, ou que é dinheiro de bandido, vou ficar com medo e vou devolver, pra ver se a honestidade me protege. Então pra essa exceção valer eu tenho que achar até no máximo uns cem reais. Nunca achei nem dez. Tive um amigo (já falecido, que Deus o tenha) que achou no chão de uma boate uma pulseira de ouro com brilhantes. Vendeu e com a grana fez uma viagem maravilhosa que não poderia faltar em sua curta vida. Perguntado se não sentia culpa, ele que nem sabia ainda que sua vida seria curta disse “Quem perde uma pulseira de brilhantes está com a vida ganha. Eu tenho que ganhar a minha e, se a sorte me ajudou, por que não?”. Faz sentido. Mas semana passada deu no jornal que um garçom, muito mais pobre que o meu amigo, devolveu a pulseira de uma gringa milionária. Ganhou uma pequena gratificação, uma foto no jornal e deve ter ido pra casa todo pimpão. Vai morrer pobre e honrado, como a grande maioria desse nosso povo.
Eu tenho essa alma de pobre. Mas tem outra coisa que eu não faço: deixar guarda-chuva na seção de achados e perdidos. Porque todas as vezes que eu perdi um guarda-chuva e fui procurar na seção de achados e perdidos, ele nunca estava lá, independente do quão chique fosse o lugar. Ou culto – em universidades, perdi inúmeros. E nos táxis, ônibus… você levaria fé de encontrar seu guarda-chuva no achados e perdidos da SMTU? Nem eu. Meu compadre tinha uma teoria de que existia uma máfia de ladrões de guarda-chuva, porque todo mundo que ele conhecia já tinha perdido vários e não tinha encontrado nenhum.
Então teve esse dia em que eu estava num ônibus com meu filho (situação que, em si, já denota uma condição desfavorável, especialmente num dia em que começou a chover de uma hora pra outra e eu, sempre otimista, não levei guarda-chuva).
Eis que, ao sentar no banco, deparei-me com ELE pendurado na altura de meus olhos, na alça do assento da frente. Um guarda-chuva desses grandes e pontudos, de seda azul e bico dourado, mecanismo sólido e perfeito, autêntico design italiano. Nada mais justo na minha situação, sobretudo diante dos muitos espécimes que perdi, inclusive um italiano mesmo que foi bem caro mas eu não aguentava mais os chineses que viram ao contrário quando você mais precisa deles – esse eu perdi na mesma semana e fiquei pagando por três meses.
Eu perguntei pra todas as poucas pessoas do ônibus se tinham perdido um guarda-chuva e nem o trocador tinha visto nada, não havia qualquer sinal do legítimo dono, ou dona. Então, docemente constrangida, fiquei com ele pra mim e me tem sido muito útil. Penso que irei perdê-lo qualquer dia mas a vida sabe ser irônica. Outro dia a garçonete de um café correu atrás de mim meio quarteirão para devolvê-lo; já o deixei em banheiros públicos, casa de amigos, ele sempre retorna. Ainda não caiu em nenhuma seção de achados e perdidos mas chegará a sua hora. Se ele sobreviver a isto, terei então confirmado minha suspeita inicial: talvez este guarda-chuva não seja deste planeta, seja uma realidade paralela, sujeita a outras leis. Ou talvez seja o guarda-chuva da Mary Poppins. Ou talvez seja só a boa-sorte que acompanha os ricos me testando, me encorajando a flexibilizar os limites da minha ética.
Difícil foi explicar pro meu filho, começando com a teoria da máfia dos guarda-chuvas e tudo, porque insisto em transmitir os bons valores cristãos e não quero que ele pense que eu sou uma espertalhona adepta do “achado não é roubado”.
Ele boceja e diz ahã, enquanto olha a chuva da janela do ônibus. Pra ele não era impossível que aquele guarda-chuva maneiro tivesse se materializado ali para nós, portanto toda aquela explicação era uma digressão desnecessária, que estava interrompendo uma importante aventura do homem-aranha dentro daquele abismo azul cheio de hastes em que se pendurar e fendas em que se esconder que ele preferia retomar o quanto antes, e eu querendo que ele preste atenção a esse papo, e eu preocupada que ele não rasgue a seda italiana e não abra o guarda-chuva ali, entre as nossas pernas.
Tomara que ele não escute mesmo tanto o que eu digo e possa entender o mundo melhor do que eu entendo.
Resta a pergunta que não quer calar: pra onde vai tudo o que a gente perde nessa vida e ninguém encontra depois, pendurado por aí? Nossa infância, nossa inocência? O existir antes da culpa, dos direito e deveres, do preço de cada coisa?
Um milagre, a pureza alegre das crianças diante das agruras de um dia de chuva. Uma merda, o papel sagrado de educar. Tomara que eu não consiga fazer meu filho crescer tão cedo.

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