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Falando em Chico Buarque, cruzei com ele semana passada na rua aqui do lado de casa, no Horto. Tive que reunir toda a experiência acumulada em uma vida de vizinhança da Rede Globo – um dia-a-dia repleto de celebridades no parque ou na padaria, caras amassadas mui diferentes das exibidas sob maquiagem, luzes e lentes da TV – pra conseguir manter a linha. Galãs ao vivo e a cores, de tão vistos, já não me causam espécie e alguns deviam mesmo evitar testemunhas quando em trajes de banho, alvas adiposidades sem photoshop levando os filhos à natação. Deviam respeitar nossa fantasia, em geral mais generosa do que a natureza. Então garanto que não me deslumbro com famosos e sei fazer aquela cara-botox, inalterada, de quem não tá nem reconhecendo.
Mas convenhamos que Chico Buarque é Chico Buarque. Mesmo à luz do dia, pequeno e magro, 60 anos, ele é de tirar o fôlego. Já o tinha visto, em três ou quatro ocasiões as mais aleatórias, e guardei sempre a mesma impressão: olhos arredios, que dão voltas rápidas e curiosas mas terminam sempre cravados no chão, como se assim pudessem não ser notados. Mas que nada, ele rutila, lá de longe eu já vi que era ele, e olha que eu nem enxergo tão bem, mas é que o cara, não tem outra palavra pra descrever, é iluminado. São os olhos modestos que o fazem brilhar tanto. Uma presença tão discreta que grita, num mundo de peitos-de-pombo.
Ao contrário dos pseudo-célebres que se têm em muito alta conta e não conseguem esconder a vaidade sob os óculos espelhados em que se exibem, Chico Buarque dispensa o Ray-ban e usa o farol baixo, a luz de neblina. Se resplandece é à revelia – seus olhos escandalosamente nus clamam por anonimato e, castos, buscam as sombras. Quando interceptados mesmo aí por nossa tara indiscreta, fogem, constrangidos. Li um dia desses – não sei se é lenda – que ele gosta de andar incógnito, sob um capacete, montado numa scooter (uma espécie de lambreta). “Nunca mais vou olhar os motoboys do mesmo jeito”, acho que foi a Cora Rónai quem disse isso. Eu também não – e pronto, cai seu disfarce de emergência, seu último refúgio.
Por misteriosa associação de idéias que talvez passe pela Gota D’água, meu pensamento foi parar no Teatro Grego. Muito antes de Eurípides, ou mesmo de Ésquilo, havia as “dionísias”, celebrações poético-orgiástico-carnavalescas em honra a Zagreu – antigo deus cretense associado à fertilidade, à transformação e à inspiração artística, depois incorporado ao Olimpo como Dioniso (ou Baco), o filho renascido de Zeus. Em momento mais apolíneo, os gregos organizaram o bacanal e inventaram a forma de espetáculo que até hoje atende pelo nome de Teatro. E já começaram com grande pompa, no auge: tinham dramaturgia da melhor qualidade, com histórias fabulosas extraídas dos mitos e uma estrutura própria, diversa da narração, que produzia efeitos catárticos num imenso público vindo de toda a Hélade. Reuniam a multidão em belíssimos templos ao ar livre, integrados aos relevos naturais e com acústica perfeita, como o de Epidauro, e utilizavam cenografia grandiosa, maquinária e efeitos especiais. Tiveram, pela primeira vez na história do ocidente, um ator: um profissional capaz de dar vida – através dos estados báquicos de êxtase e entusiasmo – a heróis, titãs ou mesmo deuses. O primeiro ator historicamente reconhecido foi Téspis de Icária (séc VI a.C.), que também escrevia e dirigia seus espetáculos, e ele já usava máscaras. Peraí, o que é que isso tem a ver com o Chico? Calma, eu já chego lá.
A máscara (que os gregos chamavam “prosópon” e os romanos, “persona”) é um artefato humano básico e está presente, desde as épocas mais remotas, em todas as culturas ocidentais, orientais e aborígenes. Sempre foi utilizada em caçadas, guerras e cultos religiosos, ou seja, quando se queria evocar espíritos, pessoas ou animais com grande eficácia. Por sua expressividade, ela se tornou o símbolo do Teatro e a melhor amiga do ator na medida em que é capaz de assumir, no seu lugar, a imagem social do personagem. Como uma interface, uma mediadora entre a pessoa do artista – que tem defeitos, vísceras e gases como todo mundo – e o arquétipo que ele encarna no palco, a dimensão transpessoal que ele atinge ao ser amplificado milhares de vezes pelas projeções individuais de toda a multidão que o assiste. A máscara é como um escudo que protege o rosto do artista da usurpação pelos deuses que, não podendo ser vistos em plena divindade, precisam se apropriar de corpos inferiores para se manifestar.
Ao fim do espetáculo, o sacerdote de Baco, em prudente atendimento a seus limites humanos, descia dos coturnos e guardava sua máscara num altar, protegida por oferendas e orações, até a próxima apresentação. Édipo podia dormir sossegado; quem ia encher a cara com o resto do elenco no Baixo-Corinto depois da estréia era o Anaxoríades da Silva, e não todos os filhos-apaixonados-pela-mãe do Peloponeso. Tudo bem que tinha suas desvantagens, o cara não saía pegando geral as Mulheres de Atenas como um ex-BBB, porque só quem era do meio conhecia o rosto de carne e osso sob a máscara heróica e ainda não tinham inventado o estilo “Caras” de ser. Mas ele podia se dedicar de corpo e alma a seu ofício de estudar a vida e as pessoas sem ter que parar a cada cinco minutos pra dar autógrafo e tirar foto com turista. O artista de hoje em dia perdeu seu escudo. Tornou-se refém de sua persona, este ser virtual à sua imagem e semelhança.
Acho que o Chico merecia ter uma cara anônima com que sair, de vez em quando, sem o peso de sua obra gravado na fronte – e sem ter que estar claustrofobicamente fechado num capacete. Quando os deuses sopraram em seus ouvidos as palavras e melodias com que ele nos encanta há tantos anos, deviam ter ocultado de nossa sanha os seus olhos, pra que ele ainda pudesse olhar ao redor sem alvoroçar o ambiente. Pra que ele pudesse observar qualquer um de nós sem que estivéssemos sempre “olhando para a câmera”, nossa naturalidade irremediavelmente perdida por sua simples presença. Foi o que pensei, ao vê-lo desde longe, na rua.
Então esse foi meu presente de aniversário para o Chico e, creia, exigiu-me um esforço sobre-humano: ao cruzar bem rente seu caminho, eis que emprestei-lhe uma máscara rápida de Zé-das-Couves e – contrariando a força magnética que atraía minha curiosidade – como que pus antolhos e cravei o foco no chão. Com a visão periférica senti uma fluorescência passar por minha orelha esquerda, vermelhíssima (não sou tão boa atriz que controle o fluxo sangüíneo), pelo breve tempo que se observa um transeunte normal. Se bem que aposto que meu andar não estava normal, apenas porque consciente de estar sendo observado pelo Chico Buarque.
Queria lhe emprestar meus olhos, castanhos e comuns, que vêem coisas simples, gente andando normal, que passa e nem me vê.
A cara do Chico é o sacrifício que ele ofereceu no altar da cultura, para ser devorada com gula consumista por nosso olho-gordo. Posso estar enganada, mas sinto que ele a carrega como um fardo, um tesouro pesado e ostensivo, que mais onera que beneficia seu guardião. É claro que ele já deve ter dado muito bom uso amoroso a seu par de esmeraldas e no vídeo ficam mesmo uma beleza, mas, na maior parte do tempo, elas chamam inconveniente atenção em contraste com os tons terracota da miséria. E tome olhares se arrastando atrás dos seus muitos quilates. Isso pesa. Sabe lá o que é não poder parar no sinal de janela aberta num fim de tarde e tirar uma meleca na obscuridade? Mijar no poste, palitar o dente, trair em público, coçar e envelhecer mal são privilégios dos inconspícuos.
Acho que o Chico deveria guardar sua cara de Apolo apartada de si, num grande teatro ao ar livre que tivesse a acústica perfeita. Onde a gente pudesse deitar oferendas, cantar seus mantras, organizar festivais em sua honra, sem invadir sua privacidade. Onde a gente pudesse por um momento, após as devidas libações, vestir em nosso rosto sua máscara entalhada pelas musas e olhar o chão, timidamente, através de seus olhos divinos. Sob as bênçãos de Dioniso, e um vinhozinho pra regar a festa. Evoé!
Enquanto isso um Chico mais mundano poderia estar por aí, levando uma vidinha besta, como a minha e a sua, em que ninguém presta muita atenção. Tirando meleca no sinal e aproveitando cada palmo da imensa liberdade de ser ninguém.
* * *
Tempo e artista
Chico Buarque/1993 – Paratodos
Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela
Modelando o artista ao seu feitio
O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso
Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta
Dança o tempo sem cessar, montando
O dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama
Que ainda está por ser escrito
No anfiteatro, sob o céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito

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