Chega em casa e desliga o telefone, pra não ficar escutando ele não tocar. Odeio barulho!
Liga a TV.
Alimenta o peixe, mas não demais. Sabia que o peixe morre pela boca? Se deixar, come até estourar. O meu não, é claro, eu controlo. Duas tampinhas por dia, nem uma migalha a mais, não adianta fazer bico.
Toma meio litro de coca light, come uma caixa inteira de bombons. O celofane rosa ela coleciona numa gaveta. Quando casar, vai usar na decoração das mesas, como viu uma vez na revista. Fica lindo. A gaveta já tem milhares de mesas, um imenso jardim. O noivo, distraído, está uma vida atrasado e seus rosas, de tão guardados, estão começando a murchar. Mas ela vai sair? Vai se expor? Fecha a gaveta. Pra isso ela não precisa de ninguém.
A novela acaba cada dia mais cedo. O dia acaba cada dia mais tarde. O bombom acabou e ninguém agüenta tanta coca-cola.
Todo peixe morre um dia, mesmo que coma pouco. Todo mundo estoura um dia, mesmo que controle.
As baratas invadem até mesmo as casas limpas. Pelas frestas, pelo ar.
A xícara suja na pia não se lava. 3 dias. Ninguém se lava só.
Daqui, nada se leva.
É um dia depois do outro. Só.
Texto livremente inspirado no espetáculo Conjugado em cartaz no Teatro Sérgio Porto (Humaitá, R/J), até 11/07. Direção de Christiane Jatahy, cenário de Marcello Lipiani, luz de Afonso Tostes, vídeo de Márcia Derraik.
Atuação solo de Malu Galli, a melhor atriz desconhecida do Brasil.
* * *
Vá ao Teatro e, se o ingresso for baratim, rolar carona e tudo, pode me chamar
A vida desta personagem não se parece muito com a minha. Eu vivo em uma casa razoavelmente grande com boa parte da família; tenho cada vez menos paciência para tv; não gosto muito de chocolate e só tomo coca heavy, mesmo assim raramente (tá bom, de vez em quando). Casei e procriei até que cedo e nunca tive um peixe.
No entanto, sou eu ali no palco. Empatia: esse condão de colocar-se no lugar do outro, sentir o que o outro sente. O mesmo sentimento que move a amizade, a solidariedade, a paz, o amor. Pois é isso que um ator provoca quando é dos bons. Toca cordas ocultas, tonalidades desconhecidas mas que estão ali, potenciais. Por isso emociona mesmo quando não há, a princípio, uma identificação. Mesmo se aquele é o outro, o diferente porque fez as escolhas que abandonei ou de que nunca dispus o ator te busca lá na cadeira e diz vem comigo, vem ser eu um pouquinho. Isso é o que há de divino no Teatro. É o que move de casa minha preguiça (o que faço sempre sob protestos de que os produtores são umas antas que ainda não descobriram que carioca gosta de jantar com calma, ver a novela enquanto se veste e sair só depois. Eu não vejo mais novela porque sinceramente. Mas sigo o biorritmo da minha cidade, detesto ter que chegar aos lugares antes das 10. Eu sei que tem gente que acorda super cedo mas para esses existe o fim-de-semana, ora. Até porque é uma minoria, carioca não acorda cedo, como provam as casas noturnas, lotadas de segunda a segunda. No dia que marcarem os espetáculos para começar às onze, vai bombar – escrevam o que eu digo. Produtores, acordem, ainda que tarde!)
Mas enfim, às vezes a gente consegue chegar a tempo e ter esta experiência que novela nenhuma consegue reproduzir.
Agora, não vá ver qualquer porcaria pra depois ficar dizendo vá ao teatro mas não me chame. Fico lembrando de meus grandes momentos de platéia: Fernanda Dona Doida Montenegro, Cacá Meu Tio Iauaretê Carvalho, Nanini Irma Vap Latorraca, Denise Mary Stuart Stoklos, Rubens Artaud Correia. Cleide Yáconis num monólogo cujo nome não lembro mas a emoção que causou ainda me arrepia. A Tempestade, impacto solene e feérico no jardim interno do Parque Lage, na tenra adolescência. Alice-Jatahy-das-Maravilhas com meu filhinho deslumbrado, itinerando pelos jardins externos do mesmo Parque, muitos anos depois. Ópera-Broadway-do-Malandro e a vontade de sair cantando e dançando pelo foyeur logo depois e abraçar o Mauro Mendonça e a Lucinha Lins, que ainda seguram a onda no gogó e no talento. Para citar apenas as primeiras imagens que me vieram.
Sem falar nas coisas maravilhosas que eu não vi por falta de grana ou por preguiça de sair de casa antes das 10.
Mas o que denigre o Teatro é que tem muito lixo feito em seu nome. Verdadeiros atentados estéticos, egotrips longas e vãs, constrangedores números de platéia que, se fossem comigo, eu pedia meu dinheiro de volta. Mentira, sou sobrevivente das piores experiências em nome da arte e, na saída, ainda parabenizo os amigos do elenco.
Ah, não me chame de hipócrita, eu não vou mudar o mundo sendo sincera, só vou perder o amigo.
Pior é que eu já estive no palco em alguns desses tristes momentos. Felizmente isso é passado e serviu para fortalecer meu caráter e calejar meu espírito. Sou capaz de assistir virtualmente qualquer chatice e dou apoio incondicional aos atores: aplaudo sempre.
Mas reconheço que o Teatro, quando é chato é, também, insuperável. Não é como um livro que você pode fechar sem ofender ninguém. Pega malíssimo sair no meio, o ator vai ver. E se for seu amigo e você sair à francesa antes de falar com ele, jamais será perdoado. Então é o tipo da tortura completa, sem escapatória, com fila de pêsames, digo, parabéns no final.
E, contudo, creia. Um bom momento cênico ainda que vivido da obscuridade da platéia compensa todos os ruins. Uma recente surpresa gratíssima foi Ensaio Hamlet, da Cia. dos Atores. Experimental sim, porém ótima. Narrativamente clara lá estava Hamlet do início ao fim ainda que ousada, coisas como Rosencrantz e Guildenstern caracterizados como Power Rangers e, acredite, era absolutamente pertinente, além de hilário de doer. Com Fernando Eiras que eu já conhecia do cinema e da televisão e achava legalzinho mas não sabia que era excelente ator de Teatro e um elenco todo muito bom, de atores inteligentes (isso existe!), onde aliás se destaca
Malu Galli. Brilhante como a Rainha Gertrudes e outros bichos (6 atores fazem todos os personagens!). Mas essa peça infelizmente já saiu de cartaz por aqui. Vai pra São Paulo, eu acho.
Então, se você mora no Rio, vai ver Conjugado, que também vai sair logo. É simples, não tem propriamente um enredo e nem uma perfeita amarração dramatúrgica. O tema da solidão não é muito original e o final fica meio solto. Mas isso quem percebeu foi o encosto de uma velha cri-cri que faz pronunciamentos teórico-críticos na minha orelha direita e que, por sorte, só me acometeu em momento posterior, digestivo. Lá dentro, houve Teatro e eu adorei. Apesar das quebras e do intencional distanciamento que elas produzem, eu estive ali, naquele cubo de vidro com persianas, comendo Sonho de Valsa e vendo a vida passar na TV.
Então sacode essa preguiça; vai ao Teatro! Você não vai morrer por ficar um dia sem novela. O risco é pequeno, o ingresso é popular. Se você odiar, será rápido a peça é curtinha. Se amar, será eterno.
E você ainda vai poder dizer que viu a Malu, que também é linda mas não é a Mader, antes da fama que cedo ou tarde há de vir. Se algum dia houver justiça ou ao menos lógica no mundo do glamour o que não tenho bem certeza mas enfim.
Talvez ela não queira o glamour, as telas, as capas de revista. Talvez queira mesmo ser uma belíssima atriz de Teatro (isso também existe!).
Então seja um privilegiado e veja o que o Brasil inteiro não viu. Uma pessoa rara, ao vivo.
Vai, desliga logo o computador e sai desse aquário. Vai ao Teatro, olhar de fora pra dentro a solidão em que cada um de nós se confinou.
Conjugado
Jul 1st, 2004 by Christiana
Fiquei t�o curiosa em saber quem � a “L�cia”, da miniss�rie Queridos Amigos, que procurei no s�o google… seu post � uma das entradas para a pesquisa “Malu Galli”. E voc�, com seu texto, me fez relembrar o quanto gosto de teatro. Pena que agora, morando no interior do Estado, n�o tenha muita (nenhuma) oportunidade de assistir a bons espet�culos.
Voltando a falar da atriz, realmente a Malu Galli � espetacular. Acho que, se ela n�o queria o glamour, j� era: depois da miniss�rie, a fama lhe � certa.
Beijos!