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A Reforma da Natureza

Esse era um dos meus livros preferidos do Monteiro Lobato, porque eu me identificava totalmente com a Emília. Além da estatura diminuta e dos eventuais ataques de mau-humor, minha persona infantil compartilhava com a boneca uma certa sensação de ser a única criatura a enxergar o óbvio e uma petulante indignação com a burrice humana, suína, sabugosa, e com os “erros” da natureza. E, claro, na minha época (ou nas ilustrações, mais antigas do que eu, dos livros que foram dos meus pais) a Emília tinha os cabelos curtos e escuros – isso era importantíssimo para mim.
A vida se encarregou de punir muitas vezes minha petulância, e minha indignação, hoje em dia, anda bem retraída. Lembro, com alguma nostalgia, de bater panelas pelas “diretas jᔠnos meus remotos 15 anos mas ultimamente, mais realista, poupo a caçarola que panela tá caro pra chuchu e enchê-la é a grande questão que move o povo.
Mas a revolta íntima persiste, eu não me conformo com a realidade. Se Deus existe, acho sinceramente que lhe falta algum senso…humano. Todo dia vejo coisas que não cabem. Com pouco esforço consigo imaginar alternativas bem mais justas para as leis da Economia e mesmo da Física e, se Alguém escutasse a minha opinião… mas esse Cara é teimoso que só, se acha O tal e faz tudo do jeito Dele. Ele também deve me achar petulante e é por isso que às vezes me põe de castigo. Mas eu vou morrer pensando bem alto: DISCORDO! Quem mandou me prover de opinião?
Acho que foi isso que eu pensei, a primeira vez que me vi no espelho. Não que eu fosse horrível, acho até que eu era bonitinha, como a maioria das crianças que não são lindas nem feias. Convenhamos que já é um lucro, poderia ser bem pior, eu sei que devia agradecer e tal, porque tem gente que é deformada, horrível, tinha até aquele cara do sinal que pedia ajuda mas as pessoas tinham repulsa só de olhar. Ai, gente, eu sei. Mas, se me dão licença de falar com franqueza, eu sempre que me olhava no espelho pensava que conseguiria facilmente evocar uma figura melhor. Na televisão e nas revistas tinha exemplos aos montes.
Pra começar, poderíamos colorir mais o conjunto. Por que não os lindos olhos verdes do meu pai, ou a lourice de minha mãe? Já daria um bom realce. O resto tava mais ou menos, tudo bem, mas o que não dava pra entender era aquele cabelo desgovernadamente crespo, que crescia em todas as direções, menos para baixo.
As tentativas de minha mãe para solucionar o problema, ressalvadas suas certamente elevadíssimas intenções, resultavam em desastres sucessivos (momentos “cogumelo”, momentos “poodle” e, os mais temidos, momentos “bozo”) que costumavam terminar com uma poda radical estilo “joãozinho” que, como o próprio nome diz, me deixava um perfeito menino. O que causava constrangimentos como o de sair do banheiro do restaurante e ser interpelada pelo garçom : “o de homens é do outro lado!”. Mas o que mais deixou seqüelas emocionais foi o fato de ter sido excluída, pelos meninos da turma, da lista de meninas namoráveis. Sim porque, se a única diferença entre meninas e meninos nessa idade é o cabelo, quem namorasse comigo provavelmente seria considerado bicha. Então eu me tornei a melhor amiga dos meninos, um tipo de menino – só que meio fresquinho e ruim nos esportes – com quem eles gostavam de conversar. Desde essa época, eu tenho mania de saia, mas não adiantava muito. Podia ser a roupa da Barbie-sonho-encantado mas, com aquele penteado do Falcon, o Ken nunca ia olhar para mim.
“Cabelo cresce”, minha mãe dizia quando eu me desesperava diante da imagem tosquiada no espelho do barbeiro. Mas de que adiantava crescer se, poucos meses depois, diante da inexorável expansão da minha cabeleira, ela recorreria novamente ao cogumelo, ao poodle ou ao bozo e, finalmente, à navalha radical?
Até hoje tenho mais medo de cabeleireiro que de dentista. Uma sala de torturas medieval, tesouras ferozes e absolutamente desobedientes aos meus apelos, comandadas por homens de voz mole e suas assistentes falsamente simpáticas mas que sempre resmungavam palavrões entre dentes na hora de desembaraçar meu cabelo, lá longe da minha mãe, enquanto arrancavam vários tufos. Um lugar de onde eu sempre saía pior do que tinha entrado.
Daí que desde a adolescência, quando me foi dado escolher o que fazer com a própria juba, resolvi fugir de salões tanto quanto possível e meu cabelo enfim cresceu. Em alguns anos (muitos, porque cabelo ondulado cresce em espirais e isso demooora) eu era a irmã morena da Rapunzel. E quer saber? Ficou até bonito (eu admito que às vezes O Cara escreve certo por linhas tortas mas ainda acho que teria poupado muito sofrimento se já tivesse nascido comprido, provando à minha mãe e a mim que as molas podiam se submeter à lei da gravidade, desde que tivessem mais de meio metro de comprimento). Sabendo o valor de cada milímetro crescido, só recorria a algum cabeleireiro para tirar as pontas, e sempre repetindo a senha de proteção, como um mantra: “aparar, só aparar”. Mas às vezes sua fúria assassina era tamanha e tão sub-reptícia que, mesmo com todos os meus cuidados, quando eu via, já tinha perdido metade da trança (“estava podre!”, argumentava ele, ou “totalmente sem corte, eu só acertei”. Depois eles vendem tudo pra fazer mega-hair, que já me contaram. Eu sei que o meu cabelo, crespo e castanho, tem uma cotação baixa mas é sempre um troquinho, né?). E tome meses para o “cogumelo” crescer e virar cabelo novamente. Na média, porém, o cabelão venceu e, pra ser sincera, não me dava o menor trabalho. Era lavar e deixar secar ao natural, sem pentear pra não desmanchar os cachos. Se tudo desse errado, era só amarrar um coque e dar um nó nele mesmo, que o cordame estava sob controle. Então essa foi uma parte capilarmente encontrada e estável de minha vida, que durou até cerca de um ano atrás.
Sabe como é, separação costuma ter pelo menos dois efeitos visíveis na mulher: perda de peso (cerca de 10% do peso corporal, um espetáculo!) e corte de cabelo. Quando este último apelo começou a ficar irresistível, antes de me submeter à tortura em mãos alheias, resolvi eu mesma assumir os trabalhos. Comprei uma tesoura profissional e, seguindo minha própria tradição de “inovação acima da razão” (assim,com bastante eco), criei meu revolucionário sistema para cortar cabelos crespos: secos, com os cachinhos já formatados, para que você possa saber como vai ficar depois. Não parece óbvio?? Por que ninguém inventou isso antes? Deve ser um complô das japonesas para manter as cabeleiras selvagens purgando no inferno astral, e poderem vender alisamentos cada vez mais caros e fedorentos.
De modo que fiz, eu mesma, minha versão do “cogumelo”: aquele cabelo crespo cortado chanel, ingrato para o rosto em 100% dos casos. Mas até que o meu fungo auto-cultivado ficou mais bonitinho, com contornos mais suaves que os da infância, cortados molhados, a régua.
Só que o cogumelo, quando acorda de mau-humor, vira bozo e ninguém pode viver tranqüilo diante desta ameaça. Então, como não poderia deixar de ser, cheguei ao “joãozinho” pelas minhas próprias mãos. Mas agora com alguma arte, um “joão-anjinho”: um falso curto, cortando os caracóis um a um, um pouco irregulares, pra não ficar parecendo uma topiaria. E sem perder jamais a noção de que um cacho de alguns centímetros pode ter mais de um palmo, quando esticado, portanto são anos de esforço orgânico ali e nenhuma tesourada deve ser impensada.
Meu hair-style foi um sucesso, opinião geral de que eu remocei 10 anos (esqueci de dizer que este é o terceiro efeito visível da mulher que se separa). Pronto, agora eu estou livre do fantasma de Edward-mãos-de-tesoura. Sou dona do meu próprio cabelo.
Mas quem disse que a gente só anda pra frente?
Outro dia, minha frágil “alta-estima” foi abalada pela afirmação chauvinista de um (não muito)amigo de que a mulher sexualmente plena tem cabelo comprido, ao que outro acrescentou “comprido e liso” (sei não, mas acho que a opinião dos meninos não evoluiu muito desde a escola primária). Querendo agradar às massas, e lembrando dos muitos centímetros escondidos em meus curtos cachos, tive a idéia brilhante: aproveitar o mote do aniversário de uma amiga e fazer uma escova. Aparecer de cabelos sedosos e, se não longos, ao menos médios, linda, praticamente loira, não seria a glória? Mil mulheres numa Lady só!
Lá fui eu gastar meu rico dinheirinho num salão de tortura. Tudo estava promissor, era um salão supostamente zen, cheirando a incenso e, o mais importante, aceitavam cartão de crédito. A moça que ia me atender tinha até cabelo crespo e eu pensei (como sempre penso, em vão): “desta vez serei compreendida”. O que eu queria era muito simples: “ficar com o cabelo liso.” Ora, todo mundo sabe o que é um cabelo liso: um cabelo que cresce para baixo. Precisa explicar melhor?
Eu suspeitei quando ela começou a fazer movimentos em forma de montanha no alto da minha cabeça. Perguntei se aquele volume não ia abaixar e ela (sem ocultar a impaciência) garantiu que “depois abaixa”. E tome cabelo pra cima. Ainda me queimou o couro cabeludo várias vezes, dizendo “agüenta firme, que é pra baixar a raiz”, enquanto puxava pra cima com força. Eu, obediente, engoli o choro pensando que a Angélica, que passa por isso todo santo dia e ainda sorri, tem um caráter muito mais firme que o meu.
No final, a recompensa: o cabelo lustroso, baloiçante, liso enfim e…armado como se tivesse uma daquelas peruquinhas de cocuruto ridículas que as mulheres usavam nos anos cinqüenta. Tentei reclamar mas a Crespa Maligna (como ficará para sempre conhecida) me fulminou e disse: “Se não abaixa mais, a culpa é do seu cabelo, não posso fazer nada.”. “A culpa é do seu cabelo” bateu fundo nos meus antigos complexos e calou minhas reivindicações. Fui embora humilhada, tentando reconhecer, no vidro de cada carro no caminho, meu rosto atrás daquele liso bolo-fofo. Por sorte eu tinha meu chapéu para abaixar a gaforinha. Ao chegar em casa, depois de uma caminhada sob o sol enchapelada até a alma, a escova já estava arruinada pelo suor abafado na cabeça. Ainda tentei salvar o investimento, ao longo do dia, com faixas, grampos e toucas. Mas o penteado enroscava a olhos vistos, e de um jeito liso, como espírito em corpo que não lhe pertence.
Quase na hora de sair, joguei a toalha: molhei as madeixas, que encaracolaram, felizes, no mesmo instante. Recuperada minha identidade-rococó, molinhas ao vento, lá fui eu para a festa.
Comentário geral (inclusive dos homens bonitos e interessantes, hum…): “você está linda, seu cabelo está uma graça!” Como se vê, nem todo homem é tão primário.
E sabe do que mais? Eu adoro meus cachinhos, são a minha cara!
Chego à mesma conclusão que a Emília, no final do livro: a gente pode ter umas idéias boas de vez em quando mas, se abóbora dá no chão, é por algum motivo. A natureza sabe o que faz!

One Response to “A Reforma da Natureza”

  1. palomadawn says:

    Uau, Chris!!! te encontro em todo canto, santa pelônia… agora, por exemplo, estou procurando algo sobre o “Meu tio Iauaretê”, que é o meu conto favorito. Pum: Nóvoa em Folha! mas… valeu, pois reencontrei a “gaforinha”. Legal, ainda ontem eu vi um velhinho, à noite, sentado numa pracinha horrorosa aqui de São Paulo, penteando a gaforinha branca…

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