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Há alguns anos, levada por circunstâncias meramente fortuitas e nada intencionais, passei um período na Floresta Amazônica com um pajé de uma tribo extinta e fiz com ele o que chamaríamos aqui na cidade de uma “iniciação xamânica”. Lá, eles não dão este ridículo nome pomposo. Quem sabe alguma coisa ensina o que sabe, apenas porque o conhecimento deve ser preservado e transmitido para as novas gerações. Isto é feito com simplicidade. Bebíamos ayahuasca – um chá sagrado para os índios, que altera os estados normais de consciência – e acabei escrevendo um livro sobre as transformações que sofremos quando modificamos a percepção habitual que temos do mundo. Ser é possuir um ângulo peculiar de ver.
Na semana passada, recebi um e-mail da Austrália, de alguém que tinha acabado de ler o meu livro, queria discutir algumas passagens e me mandava um link de matéria que relacionava o uso da ayahuasca com a cura do câncer. Eu não conhecia esta propriedade do chá indígena.
Um livro – como um filho – exibe a autoria, ainda que tente escondê-la. Todo o livro tem a cara do autor, assim como estamos estampados nos filhos, nem poderia ser diferente. Algumas pessoas nos chegam ou se afastam de nós através dos livros que escrevemos, como através dos filhos que temos. E são curiosos os amigos e as questões que filhos e livros que criamos podem nos trazer.
O câncer ainda é uma doença misteriosa. Não é hereditária, não é contagiosa, não sabemos como evitá-la nem de que maneira ela pode nos atingir. Conhecemos doentes que morreram e outros que estão aí muito bem, vivinhos da silva. Mas um diagnóstico de câncer transforma uma vida – ou acaba com ela ou obriga a mudanças radicais.
Tempos atrás, o marido de uma conhecida caiu morto quando dava a sua corrida matinal na praia de Copacabana. Enfarte fulminante. Como morreu na rua, teve que ser autopsiado no IML. Lá, descobriram que tinha câncer e estava cheio de metástases. Na verdade, era uma metástase ambulante. Mas, como nunca soube o que tinha, levava vida normal, trabalhava, corria todos os dias e era chegado a futebol e chope com os amigos no fim-de-semana. Acabou morrendo de enfarte. A não-consciência da doença ou a suposta consciência da saúde teriam alguma coisa a ver com isso?
Não sei.
Acredito que somos o que achamos que somos e, se mudarmos o que achamos que somos, nos mudaremos. É uma possibilidade. Mas também é possível que sejamos seres inapelavelmente predestinados e sem nenhum arbítrio sobre o destino.
Fiquei pensando no e-mail do novo amigo australiano. A ayahuasca é uma bebida sagrada para os povos da floresta. Por lá, dizem que sua tradição remonta aos incas. Nunca investiguei esta crença nem me interesso por sua origem, me interesso – e muito – por estados alterados de consciência, daí meu interesse por religiões. Tive uma experiência pessoal com este chá, dito alucinógeno. Bebi ayahuasca pelo espaço de uma lua com um velho índio e minha vida mudou porque passei a ter uma percepção diferente de mim e do mundo. É o que eu acho.
Mas… pode ser que eu tenha mudado porque o chá – que se acredita introduzir novos estados de consciência – na verdade cura o câncer. E, se eu fui curada de um câncer que nunca soube que tinha, seria razoável que a minha vida mudasse para melhor e este papo de que consciência alterada altera a vida seja mesmo (e só) um papo Nova Era. A consciência não tem poder nenhum e todo o poder está com o câncer.
Há anos desenvolvo uma teoria, entre muitas, para explicar a vida, que cada vez mais me foge às explicações: a teoria da sistemática do acaso. De acordo com esta teoria, o mais improvável é o que sempre acontece. O lógico, o razoável, o desfecho que não pode ser atribuído a uma enorme coincidência é ficção: faz parte da boa literatura.
A vida, mesma, é literatura de péssima qualidade, recheada de acasos cavilosos. O que acontece na vida desmoralizaria qualquer autor.
Mas… o e-mail do amigo australiano me fez duvidar da teoria da sistemática do acaso. Talvez tudo seja lógico, sim; racional; mensurável em laboratório. A transformação que a ayahuasca nos traz é a cura do câncer: que interferia nas nossas atitudes – já que tudo é físico -, ainda que não soubéssemos que estávamos seriamente doentes.
Estou fazendo força para achar também milagroso. Está difícil. Mas o que não admito é abrir mão do milagre cotidiano. Devo elaborar uma nova teoria, pelos próximos dias.

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