Sempre fui louca por Circo. Fui poucas vezes, na infância. Acho que minha mãe não era muito fã do programa, ou todo mundo naquela época andava meio traumatizado por causa do incêndio do circo em Niterói, aquela tragédia que acabou por revelar o Profeta Gentileza (informação aleatória: muito embora reze a lenda de que ele perdeu toda a família no incêndio, tal fato não ocorreu. Ele abandonou sua própria família e uma vida confortável no interior para prestar auxílio aos familiares das vítimas, seguindo uma revelação espiritual. Sei de fonte limpa, meu amigo fez um filme sobre ele). Fato é que fui poucas vezes ao Circo na infância, não mais que 2 ou 3, portanto pude fantasiar à vontade em cima de cada imagem que consegui capturar então.
Mais do que o show espalhafatoso, que sempre achei meio cafona, ou a profusão de animais torturados, que ofendiam meu espírito ecológico (eu fui uma eco-militante mirim), me fascinavam os números de risco, em que eu percebia a iminência da morte. As facas, os números com fogo, as pirâmides humanas, o trapézio. Aquilo me provocava um verdadeiro êxtase, e um desejo irresistível de estar ali, oferecendo a minha própria morte em espetáculo. Cheguei a fazer umas aulinhas de circo na adolescência, onde experimentei, ainda que brevemente, a sensação de subir num trapézio, ou de me atirar de costas de uma plataforma de 4 metros de altura e cair num colchão, ou escalar um tecido. Mas não tive fibra para persistir diante dos apelos maternos, reforçados maldosamente por previsões astrológicas catastróficas que prometiam aleijões e seqüelas as mais terríveis. Minha faceta mais covarde aliou-se à mais preguiçosa e venceu por maioria absoluta. Abandonei os saltos mortais e resolvi investir em técnicas de “clown”: acrobaciazinhas menos arriscadas, nada além de uma parada-de-mão ou uma estrela, só pra poder ver o mundo de cabeça-pra baixo e aprender a cair os mais variados tombos sem perder o rebolado. Meu palhaço, com a idade, tornou-se tímido e o Circo perdeu meu talento. Mas ainda sou dura-na-queda. Ou antes, macia (esse é o segredo!).
No entanto havia na atmosfera circense algo que me fascinava ainda mais que o picadeiro. Um breve recorte, um vislumbre roubado entre ir ao banheiro e voltar: a vida fervilhando por trás da lona, os bastidores. Os trailers, com sua vida nômade suspensa entre a irrealidade do espetáculo e a concretude das meias no varal, os cães e as crianças que circulavam por ali. Ah, que inveja eu sentia daquelas crianças, que viviam viajando e conhecendo gente diferente, aprendendo truques, uma vida de emoções sempre novas, luzes e festa. Mesmo a notória precariedade e a impressão de pobreza do acampamento não me incomodavam, era uma pobreza rica, colorida, feliz. Quem precisa de muito dinheiro quando vive assim em meio à arte?
Minha avó materna compartilhava da minha paixão. Sempre disse que queria ter fugido com o Circo. Eu achava essa idéia incrível, altamente sugestiva, fugir com o Circo.
Então uma vez ela me contou a história de uma contra-parente sua contemporânea, a Maricotinha-dos-Apitos, que foi “roubada” pelos ciganos do Circo, ainda criança (esclarecimento: na maioria das vezes, as crianças eram, na verdade, abandonadas pelas famílias e recolhidas por ciganos. Era uma forma prática de resolver gravidezes indesejadas e outros deslizes do planejamento familiar). Anos depois ela reencontrou a família de sangue, que era abastada e lhe acenava com confortos e dignidades, mas preferiu continuar com sua gente adotiva. Ela amava sua vida de artista e não a trocaria por nada. Deixou para minha avó, como lembrança, um xale preto todo trabalhado em metal dourado, que usava em seu número de andar sobre a bola. Minha avó me deixou de herança o xale e essa alma cigana, que não está no sangue. Um gosto por trupe, caravana, música e dança. Por saia rodada e lenço. Por contar e ouvir histórias. Brincar de adivinhar a sorte.
Mas eu, como minha avó, não segui o Circo, fiquei só imaginando. Minha avó cantava e recitava poesia enquanto cozinhava, arrumava a casa. Foi assim que eu aprendi Os Lusíadas, O Navio Negreiro, I-Juca Pirama, sonetos de Camões
Vovó era uma diva doméstica, uma artista do cotidiano, preenchia com a vivacidade de seu espírito as tarefas mais bisonhas do dia-a-dia. Tinha o Circo em si.
Eu cuido da minha alegria para que minha avó não se perca da família, para que o espetáculo possa sempre recomeçar.
Os cães ladram, mas a caravana passa. A gente recolhe a tenda aqui, pra armar a festa ali adiante.
Eu andava meio tristinha com umas bobeiras aí, mas quer saber do que mais? Palhaço que é esperto aproveita a queda e levanta na cambalhota.
Hoje tem brincadeira? Tem, sim sinhô!
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O Circo
Oct 14th, 2004 by Christiana